Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, agosto 28, 2015

José Serra Quando a queda do governo é a solução.

ESTADÃO 

27/08/2015 | 

O atual governo cumpriu apenas um sexto do mandato, mas se dependesse da opinião da maioria dos brasileiros já deveria ter chegado ao fim. As pessoas sentem que essa é uma condição necessária para desatar o novelo das crises econômica, social, política e moral, que se entrelaçam de forma perversa.

Acontece que o sistema brasileiro é presidencialista: o chefe do governo, eleito por quatro anos, não pode ser removido do cargo antes do tempo, mesmo que se tenha revelado incompetente e/ou traído seus compromissos de campanha.

No presidencialismo a interrupção de mandato exige outros motivos, como crimes comuns ou de responsabilidade, num processo arrastado e penoso.

Fosse vigente o parlamentarismo, o atual governo já teria sido obrigado a renunciar, sem traumas maiores – bastariam as derrotas sofridas no Congresso e a rejeição da opinião pública. Nesse sistema existe, sim, o cargo de presidente da República, mas ele é o chefe de Estado e representa a nação. Não define as prioridades nacionais nem governa o país no dia a dia. Quem faz isso é primeiro-ministro, nomeado pelo presidente e apoiado pela maioria do Congresso. Ele é o chefe do governo: elabora seu plano de ação e preside o gabinete de ministros.

Se aquela maioria se desfizer, numa espécie de voto de desconfiança no governo, o gabinete de ministros vai embora.

O primeiro-ministro renunciante pode até pedir ao presidente que convoque novas eleições parlamentares, cujo resultado ou lhe devolve a maioria ou o levará a se demitir de uma vez. 

É o que está acontecendo na Grécia, onde Alex Tsipras, o primeiro-ministro, perdeu o apoio da ala esquerda do seu partido, renunciou e pediu ao presidente a dissolução da Câmara de Deputados e a convocação de nova eleição. Os deputados não querem isso, pois muitos temem não ser reeleitos. Por isso mesmo os partidos estão procurando compor outra maioria que dê sustentação a novo governo, baseado no entendimento sobre o que fazer para enfrentar a crise econômica.

Se der certo, haverá novo primeiro-ministro. Se não, as eleições serão inevitáveis e Tsipras pode até voltar fortalecido, caso seus atuais apoiadores cresçam nas urnas. Seu nome, hoje, é bem visto por mais de 60% dos gregos.

Como disse a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, em recente visita ao Brasil, "no parlamentarismo, a renúncia não é um componente da crise. A renúncia é a solução". 

O parlamentarismo, de fato, permite absorver melhor mudanças de governo e de políticas. Mas há objeções a esse sistema: a mais comum, e nem por isso menos equivocada, parte da ideia de que o Legislativo passaria a ser excessivamente forte. Nada mais falso. O Congresso, no presidencialismo brasileiro, já tem imensos poderes – derruba vetos, rejeita medidas provisórias, aprova bombas fiscais, emendas à Constituição, faz CPIs e até destitui presidentes, como no caso Fernando Collor. No parlamentarismo o Congresso é obrigado a assumir mais responsabilidades e a ter mais responsabilidade.

Não dá para uma maioria integrar o governo e, ao mesmo tempo, votar contra projetos essenciais do Executivo – ou, então, aprovar outros que contrariem o programa do primeiro-ministro. Se o fizer, o governo se liquefaz, dando lugar a outro tipo de coalizão parlamentar, sem falar da possibilidade de serem convocadas novas eleições.

Na Constituinte, o sistema parlamentarista só não foi aprovado por causa de um grande equívoco das forças que o defendiam. O então presidente José Sarney (1985-1989) dispôs-se a apoiá-lo, mas, em troca, pretendia exercer o seu mandato durante cinco anos, e não quatro, como queriam os parlamentaristas.

Por incrível que pareça, aquelas forças, que eu integrava – juntamente com Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Richa, Roberto Freire e tantos outros –, recusaram o acordo, insistindo nos quatro anos.

Armou-se o confronto e os partidários de Sarney organizaram a derrota do projeto, agregando os constituintes que seguiam a liderança dos presidencialistas Orestes Quércia, então governador de São Paulo (PMDB), Marco Maciel, guru do PFL, e Leonel Brizola, líder do PDT e com grande influência nos eleitorados do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro.

A defesa do parlamentarismo foi um dos primeiros fatores da criação do PSDB, surgido de uma dissensão do PMDB, no fim da Constituinte. Todos os fundadores, sem exceção, batalhavam pela implantação do sistema. Por isso mesmo hoje me sinto confortável ao defender no meu partido a retomada da bandeira parlamentarista, não apenas como fidelidade às nossas origens, mas pela estabilidade e pela governabilidade do País. 

Que fique bem claro: não estou propondo a introdução do sistema parlamentarista como remendo destinado a resolver a atual crise política, tampouco para empurrá-la com a barriga. Ambas as coisas foram feitas na crise que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros, aos sete meses de mandato, em 1961. Os militares opuseram-se à posse do vice-presidente João Goulart, que viajava pelo exterior. Mas aceitaram que Jango assumisse o cargo se fosse aprovado o parlamentarismo. Dito e feito! Mas o resultado foi desastroso, pois, ao invés de fortalecer o novo sistema, Goulart empenhou-se na sua derrubada, que ocorreu 16 meses depois.

A ideia é que, nos próximos anos, preparemos a implantação do sistema nas eleições de 2018, para vigorar a partir de 2019. Não é pouca coisa: debater no Congresso e na sociedade, negociar com os diferentes partidos, encontrar o formato mais adequado ao Brasil e preparar as emendas e leis necessárias, incluindo a da profissionalização da direção dos órgão públicos, um corolário natural do parlamentarismo. Paralelamente, estudar as condições do referendo que provavelmente será necessário.

Angela Merkel está certa: precisamos de um sistema em que a queda de um governo pode ser a solução, não o problema.

*José Serra é senador (PSDB-SP)

sábado, agosto 15, 2015

Tristes trópicos - Cora Rónai

O Globo 13/8/15

"Chega! Que mundo é esse, eu me pergunto?", canta Gabriel o Pensador na melhor música de protesto dos últimos tempos. "Chega! Quero sorrir, mudar de assunto!" Quem não quer? Os dias estão lindos, o tempo está uma glória, as ruas estão enfeitadas pelas orquídeas que mais uma vez florescem nas árvores a que foram amarradas, as capivaras têm aparecido com regularidade. Mas a pobre da Lagoa fede e envenena os remadores que vêm de fora, a baía é um desastre ambiental, as praias estão imundas, os taxistas estão atacando os passageiros e motoristas do Uber, as universidades estão em greve, a violência está por toda a parte, os preços estão em alta, os salários e aposentadorias em baixa, há desemprego, há lojas fechadas, negócios falidos, planos cancelados.

A crise arreganha os dentes em cada esquina, e nós ainda somos obrigados a ouvir o Pezão, lamentando a chance perdida de despoluir as águas da cidade, que ele havia prometido entregar limpinhas para as Olimpíadas, e a "presidenta", lamentado o aumento das contas de luz, que às vésperas das eleições ela reduziu com o ar triunfante de quem fez um ótimo serviço. Lamentam, pois é, como se não tivessem nada a ver com isso; lamentam como se a culpa de nos encontrarmos nessa situação caótica e deprimente em que tudo está ruim ao mesmo tempo não lhes coubesse em boa parte, como se fossem duas inocentes vítimas do destino e da conjuntura internacional. Para piorar o que já estava péssimo, agora ainda temos o Renan Calheiros — o Renan Calheiros! — como fiador da República.

Chega!

Quero mudar de assunto, mas a crise sequestra a pauta e não há outra conversa: no trabalho, em família, entre amigos, na fila do banco (sobretudo na fila do banco), na condução, na fila do supermercado (sobretudo na fila do supermercado), no salão, na porta da escola.

Chega!

______

Sou só eu, ou vocês também ficam bestas com as quantias que estão vindo à tona na Lava-Jato? Cada rato que faz acordo de delação premiada se compromete a devolver cinquenta milhões, setenta milhões, cem milhões. Vai dizer que ninguém viu isso, que ninguém sabia disso? A quem eles pensam que enganam? Casas reformadas por empreiteiras, apartamentos pagos por amigos, viagens em jatinhos para suítes de luxo nos grandes hotéis internacionais... Essa era a gente que queria mudar o mundo?

______

Um conhecido meu, americano, professor universitário, postou isso:

"Panelaço: amig@s brasileir@s: podem me explicar o panelaço ontem? Sem entrar no debate sobre o grau de culpabilidade da Dilma e/ou o PT pela crise atual, ela é a Presidenta eleita. Para mim uma fundação de qualquer democracia é a discussão, de ouvir e ser ouvido. Pode odiar, pode sentir náusea pelas palavras do seu adversário (até escutar para criticar depois) mas realmente não entendo um esforço coordenado para silenciar. Para mim, isso não alimentaria um país (estou dizendo um país e não 'um governo' de propósito) em crise. Alguém pode me explicar e/ou defender o panelaço? Fico assustado e confuso."

Achei o desafio interessante, sobretudo porque vários petistas já haviam oferecido a sua (previsível) interpretação. E respondi:

Já vi que sou uma voz dissonante entre os seus amigos; então o meu ponto de vista talvez contribua para a sua compreensão. Os governistas estão muito empenhados em fazer crer que o panelaço é obra de reacionários neo fascistas da classe média alta que estão descontentes porque não podem mais viajar para Miami, instigados pela mídia golpista. Preciso dizer como essa leitura é ofensiva a qualquer pessoa de bem? Um dos motivos de vivermos hoje num país tão polarizado e cheio de ódio é, justamente, essa recusa em aceitar o fato de que boa parte — se não a maior parte — da população está profundamente descontente com o governo: com a sua incompetência, a sua roubalheira e, last but not least, a sua arrogância. Nem todo mundo que bateu panela quer o impeachment da Dilma; muita gente apenas protesta, porque é o que lhe restou fazer. Ouvir o programa do PT é, para quem está até aqui com o governo, um insulto adicional: uma sucessão de mentiras que culminou com a ridicularização de panelaços anteriores. O panelaço é a recusa dessas mentiras, a forma de se dizer "Enchi disso!". O panelaço, por incrível que pareça, é uma forma de se fazer ouvir, uma forma de diálogo com um governo que tem, sistematicamente, ignorado o descontentamento da população.

______

O panelaço é, em última instância, uma tremenda vaia.

______

Tenho pena dos funcionários das empreiteiras atingidas pela Lava Jato, gente boa e capaz que não tem nada a ver com as maracutaias tramadas pelos seus dirigentes. Há poucos meses estive no Galeão vendo as obras de expansão do aeroporto, e fiquei muito impressionada com o cuidado e o entusiasmo de todos. Também tenho acompanhado as obras do metrô que estão sendo feitas em frente à minha casa, e apesar de sofrer com o barulho e com a poeira constantes, só tenho elogios à organização dos trabalhos.

Força aí, moçada! Não está fácil para ninguém.

Tristes trópicos - Cora Rónai

O Globo 13/8/15

"Chega! Que mundo é esse, eu me pergunto?", canta Gabriel o Pensador na melhor música de protesto dos últimos tempos. "Chega! Quero sorrir, mudar de assunto!" Quem não quer? Os dias estão lindos, o tempo está uma glória, as ruas estão enfeitadas pelas orquídeas que mais uma vez florescem nas árvores a que foram amarradas, as capivaras têm aparecido com regularidade. Mas a pobre da Lagoa fede e envenena os remadores que vêm de fora, a baía é um desastre ambiental, as praias estão imundas, os taxistas estão atacando os passageiros e motoristas do Uber, as universidades estão em greve, a violência está por toda a parte, os preços estão em alta, os salários e aposentadorias em baixa, há desemprego, há lojas fechadas, negócios falidos, planos cancelados.

A crise arreganha os dentes em cada esquina, e nós ainda somos obrigados a ouvir o Pezão, lamentando a chance perdida de despoluir as águas da cidade, que ele havia prometido entregar limpinhas para as Olimpíadas, e a "presidenta", lamentado o aumento das contas de luz, que às vésperas das eleições ela reduziu com o ar triunfante de quem fez um ótimo serviço. Lamentam, pois é, como se não tivessem nada a ver com isso; lamentam como se a culpa de nos encontrarmos nessa situação caótica e deprimente em que tudo está ruim ao mesmo tempo não lhes coubesse em boa parte, como se fossem duas inocentes vítimas do destino e da conjuntura internacional. Para piorar o que já estava péssimo, agora ainda temos o Renan Calheiros — o Renan Calheiros! — como fiador da República.

Chega!

Quero mudar de assunto, mas a crise sequestra a pauta e não há outra conversa: no trabalho, em família, entre amigos, na fila do banco (sobretudo na fila do banco), na condução, na fila do supermercado (sobretudo na fila do supermercado), no salão, na porta da escola.

Chega!

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Sou só eu, ou vocês também ficam bestas com as quantias que estão vindo à tona na Lava-Jato? Cada rato que faz acordo de delação premiada se compromete a devolver cinquenta milhões, setenta milhões, cem milhões. Vai dizer que ninguém viu isso, que ninguém sabia disso? A quem eles pensam que enganam? Casas reformadas por empreiteiras, apartamentos pagos por amigos, viagens em jatinhos para suítes de luxo nos grandes hotéis internacionais... Essa era a gente que queria mudar o mundo?

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Um conhecido meu, americano, professor universitário, postou isso:

"Panelaço: amig@s brasileir@s: podem me explicar o panelaço ontem? Sem entrar no debate sobre o grau de culpabilidade da Dilma e/ou o PT pela crise atual, ela é a Presidenta eleita. Para mim uma fundação de qualquer democracia é a discussão, de ouvir e ser ouvido. Pode odiar, pode sentir náusea pelas palavras do seu adversário (até escutar para criticar depois) mas realmente não entendo um esforço coordenado para silenciar. Para mim, isso não alimentaria um país (estou dizendo um país e não 'um governo' de propósito) em crise. Alguém pode me explicar e/ou defender o panelaço? Fico assustado e confuso."

Achei o desafio interessante, sobretudo porque vários petistas já haviam oferecido a sua (previsível) interpretação. E respondi:

Já vi que sou uma voz dissonante entre os seus amigos; então o meu ponto de vista talvez contribua para a sua compreensão. Os governistas estão muito empenhados em fazer crer que o panelaço é obra de reacionários neo fascistas da classe média alta que estão descontentes porque não podem mais viajar para Miami, instigados pela mídia golpista. Preciso dizer como essa leitura é ofensiva a qualquer pessoa de bem? Um dos motivos de vivermos hoje num país tão polarizado e cheio de ódio é, justamente, essa recusa em aceitar o fato de que boa parte — se não a maior parte — da população está profundamente descontente com o governo: com a sua incompetência, a sua roubalheira e, last but not least, a sua arrogância. Nem todo mundo que bateu panela quer o impeachment da Dilma; muita gente apenas protesta, porque é o que lhe restou fazer. Ouvir o programa do PT é, para quem está até aqui com o governo, um insulto adicional: uma sucessão de mentiras que culminou com a ridicularização de panelaços anteriores. O panelaço é a recusa dessas mentiras, a forma de se dizer "Enchi disso!". O panelaço, por incrível que pareça, é uma forma de se fazer ouvir, uma forma de diálogo com um governo que tem, sistematicamente, ignorado o descontentamento da população.

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O panelaço é, em última instância, uma tremenda vaia.

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Tenho pena dos funcionários das empreiteiras atingidas pela Lava Jato, gente boa e capaz que não tem nada a ver com as maracutaias tramadas pelos seus dirigentes. Há poucos meses estive no Galeão vendo as obras de expansão do aeroporto, e fiquei muito impressionada com o cuidado e o entusiasmo de todos. Também tenho acompanhado as obras do metrô que estão sendo feitas em frente à minha casa, e apesar de sofrer com o barulho e com a poeira constantes, só tenho elogios à organização dos trabalhos.

Força aí, moçada! Não está fácil para ninguém.

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