Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, agosto 23, 2004

Agosto 23, 2004

Agosto 23, 2004
João Ubaldo Ribeiro 23 08 2004 Realismo nacional
By thameyer
Vivendo e não aprendendo. Volta e meia, se bem deva ressaltar que é nas ocasiões em que me acho provocado ou convocado, tenho uns ataques de indignação a que dou vazão por escrito. E aí, no dia da publicação, retorna a sensação que me acompanha desde que peguei experiência em jornalismo: coisa mais besta, não adianta nada ficar falando ou reclamando, nunca adiantou. Sim, claro que, em oportunidades especiais (ou “tópicas” — tenho lido muito esta palavra e não sei bem o que querem dizer com ela, mas soa chique e resolvi usá-la, também sou filho de Deus), escrever sobre algum problema ajudou a resolvê-lo. Mas somente o problema, não a situação que o causou ou o estado de coisas em que sempre vivemos, embora piorado nos últimos anos. (Não estou falando mal do governo agora; olá, pessoal que adora ler nas entrelinhas, não tem entrelinha nenhuma, não estou falando mal do governo, estou falando da vida em geral nos anos mais recentes, garanto a vocês.)
Por mais que tente e faça conferências aos amigos e a mim mesmo sobre como é burrice ficar dando murro em ponta de faca, em vez de cuidar da vida como todo mundo de juízo, insisto nos maus hábitos. Dei até para achar que o dr. Fernando Henrique estava coberto de razão em descrever e anatematizar a categoria dos catastrofistas. Como muitas vítimas de certas enfermidades incapacitantes, passei por um longo período de negação, mas a verdade é que me descobri um catastrofista. Que me reste pelo menos a coragem de discutir em público problema tão toldado pelo preconceito, considerado tabu e até mantido em sigilo pelos familiares do padecente. O fato é inegável, eu sou um catastrofista e não sei se já criaram os Catastrofistas Anônimos, mas, se criaram, bem que eu podia freqüentá-los.
Vou combater o catastrofismo, não chegarei ao fundo do poço. E a Providência, sempre atenta aos necessitados, já me socorreu, acho que nem precisarei de outra ajuda. No domingo passado, encontrava-me eu no boteco, na distinta companhia de diversos notáveis cujos nomes a modéstia me impede de citar, principiando um comício sobre a decisão que, segundo li nos jornais, proíbe que as prestações de crediários sejam pagas em dinheiro. Vão ter que ser pagas em cheque, cartão, qualquer instrumento bancário. Isso invalida o curso livre da moeda nacional como meio de pagamento e obriga os pobres a ter contas bancárias. Todos pagarão taxas bancárias e CPMF, para quitar suas prestações. Coisa absurda, comecei a blaterar, mais uma manobra para dar dinheiro aos bancos e aumentar a arrecadação. Mas, assim que comecei a falar, fui gentilmente interrompido por um companheiro, que me fez ver não ser bom para minha pressão arterial ficar tão indignado assim. Naquele mesmo domingo, esta coluna já tinha saído meio belicosa. Nesse passo eu ia acabar tendo uma morte fora de moda, por apoplexia. Já pensara eu em que notícia desairosa? “Imortal morre de apoplexia.” Ia pegar mal, apoplexia não se usa mais. Muito chato para a imagem da Academia, ainda mais a troco de nada.
— Me diz uma coisa — falou o sábio companheiro —, você está vendo alguém ligando para esses negócios que deixam você tão fora de seu normal, que é tão bem-humorado? Alguém está ligando?
— Eu estou ligando, muita gente está ligando, o povo todo está ligando, qualquer um pode constatar isso.
— Você me desculpe, eu tenho grande respeito intelectual por você, não vai nisto nenhum demérito, mas é o contrário do que você disse. O que você pode constatar é que ninguém está ligando.
— Não concordo. Toda hora alguém fala.
— Fala! Isso é outra coisa. Mas ligar efetivamente, não. É uma boa ser revoltado, mas ser revoltoso dá muito trabalho. O Brasil é assim, sempre foi assim, vai continuar assim, a nossa é esta mesmo, está todo mundo satisfeito.
— Não está! Isso é uma completa maluquice sua.
— Desculpe, mas a maluquice é sua. Quando eu digo “todo mundo”, claro que estou generalizando, há sempre alguns, desculpe, um tanto fora de prumo como você, ou que estão com problemas e reclamam, mas ninguém está ligando, mete isso na cabeça de uma vez e pára de te aporrinhar à toa. Se o problema toca no sujeito, aí é diferente, aí ele vira bicho, vai brigar, entra na Justiça, faz carta pro jornal e promove até passeata. Que, por sinal, para muita gente aqui no Rio, é um programaço, até a azaração come solta. Mas, se não incomodar ele, pode deixar tudo aí, que está ótimo. Olha aí o boteco, todo mundo numa boa, não tem ninguém preocupado com merda de liberdade de imprensa nenhuma, nem com CPMF, todo mundo sabe que é isso mesmo e que o negócio é se arrumar, o exemplo começa bem em cima. Pronto, acho que consegui resumir. Enfia isto na cabeça, de uma vez por todas: o lema de todo mundo é “o único problema é o meu e o que interessa na vida é me arrumar”. Eu sei que você é idealista e tal, mas não é burro, tem que se curvar à realidade. E a realidade é essa, o negócio de todo mundo é se fazer, o brasileiro é assim. Até no seu caso, pode ter certeza de que muita gente acha que você está levando alguma vantagem nessas tuas posições. Ou então é inocente útil ou otário, o povo todo acha que o que interessa é se fazer. E para mim está certo, você sabe? O que é esta vida? É a que é que a gente leva. O povo está certo, o negócio é se fazer, porque é aqui que se vive e, se a gente não aproveitar agora, enterrado é que não vai aproveitar. Sacou, meu paladino? Como é, não vai mexer os pauzinhos pra levar a grana de nenhum prêmio literário este ano, não? Não vem me dizer que não se mexe pauzinho para ganhar esses prêmios, também assim você já está babacão demais. O cara, pra se dar bem... JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
Publicadoem: Mon, Aug 23 2004 3:14 PM

domingo, agosto 22, 2004

Agosto 22, 2004

Agosto 22, 2004
Antônio Ermírio de Moraes Atenas e os jovens

Atenas e os jovens
Antônio Ermírio de Moraes*
Empresário
Tenho visto muitos comentários a respeito da pequena safra de medalhas conquistadas até o momento pelos atletas brasileiros que compareceram a Atenas. Penso que, além de injustas, tais críticas não levam em conta a importância do esporte para a formação dos jovens.
É claro que o esporte, sozinho, não pode garantir uma boa educação e um bom desempenho das pessoas no trabalho e muito menos a solução dos megaproblemas sociais que pairam sobre nossa sociedade. Mas, quando praticado pelos jovens, o esporte alavanca o desenvolvimento pessoal e a sua integração na comunidade onde vivem. A atividade esportiva reforça o sentido da vida, desenvolve a ética de conduta e a própria disciplina de vida. O seu impacto, portanto, vai muito além da transformação física que proporciona às pessoas, chegando a ser um dos fatores mais importantes para a alimentação da sua auto-estima.
Por isso, vejo a maciça participação brasileira na Olimpíada da Grécia com muitos bons olhos e como um efeito de demonstração de grande importância para a juventude em geral.
Tenho certeza de que muitos jovens se animarão a praticar vários esportes, até então desconhecidos, mas que foram agora ressaltados na sua beleza pelas provas em Atenas.
O Brasil é conhecido mundialmente como o país do futebol. Mas o mundo está vendo que nossos jovens também se aplicam em várias outras modalidades esportivas, mesmo quando não trazem medalhas. Trata-se de uma juventude sadia - quem pratica esporte tem pouco tempo para o ócio, a bebida ou as drogas - e que busca no esporte uma forma eficiente de combater o sedentarismo do trabalho moderno e a influência nefasta da alimentação desbalanceada que domina os dias de hoje - em especial, o fast food.
Tenho acompanhado as provas dos nossos compatriotas e dos estrangeiros. Sinto orgulho de ver tantos brasileiros disputando os mais altos postos do esporte mundial. Alegro-me igualmente de ver o congraçamento que existe entre os adversários. Admiro a forma como eles se abraçam depois de terminados os jogos e na hora em que recebem os prêmios.
É claro, o ouro é o ouro. Mas os detentores do bronze e da prata são igualmente respeitados pelos ganhadores do ouro, pois todos sabem o esforço e a disciplina que são necessários para se chegar àquele nível.
Lamento apenas a inflação dos chamados auxiliares da nossa delegação. Vejo que países mais ricos do que o Brasil foram muito comedidos ao enviar apenas os técnicos que são absolutamente necessários. Essa é a mania que ainda ronda a vida esportiva do Brasil: os cartolas são mais numerosos do que os atletas.
Penso que isso também faz parte do aprendizado. Este momento é mais para cumprimentar e homenagear nossos jovens do que para avançar na crítica. A participação de tantos brasileiros em tantos esportes tem de servir de exemplo para as nossas escolas e clubes no sentido de apoiar e ampliar as oportunidades para crianças e adolescentes praticarem esporte com a maior atenção possível. Isto será importante para o amadurecimento da nossa infante cidadania.
*Antônio Ermírio de Moraes escreve para o JB aos domingos
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 8:16 PM
A situação ainda não é tão positiva : economista americano Werner Baer

A situação ainda não é tão positiva
O economista americano Werner Baer escolheu, por acaso, o Brasil como alvo de estudos nos anos 60. Nunca mais parou. PhD por Harvard, professor da Universidade de Illinois, passou os dois últimos meses no Ibmec Educacional colhendo dados sobre os primeiros anos do governo Lula para o capítulo que vai integrar a terceira edição de seu livro “A economia brasileira”. Em uma hora de entrevista, usou nove vezes as palavras dilema e desafio. Afirma que o Brasil continua vulnerável. Mesmo assim, se diz otimista. Flávia Oliveira
No livro “A economia brasileira” o senhor faz uma análise muito dura sobre a crise de 2002. Chega a afirmar que o Brasil seria forçado a renegociar as dívidas interna e externa, diante do tamanho do endividamento em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e das incertezas sobre o novo governo. A que fatores o senhor atribui esse erro de avaliação?
WERNER BAER:Apesar do superávit comercial ter crescido muito, o Brasil ainda não está numa situação muito positiva. As taxas de juros lá fora estão aumentando. Por isso, não vai ser tão fácil diminuir o peso do serviço da dívida externa. Nos próximos três anos, o país terá que refinanciar 60% de sua dívida externa. Vai precisar, na média, de US$ 40 bilhões anuais para amortizações e serviço da dívida. O superávit comercial de US$ 21 bilhões não é suficiente e a entrada de investimento direto caiu. A situação nos próximos anos não será tão fácil como muitos acreditam.
O senhor ainda vê muita vulnerabilidade externa?
BAER: A vulnerabilidade não desapareceu, mesmo se o superávit comercial se mantiver na faixa de US$ 21 bilhões. E é difícil que ele continue a longo prazo, porque não há garantia de que a taxa de crescimento das exportações vá continuar. Se aumentarem os juros nos Estados Unidos, o crescimento lá vai diminuir e, com ele, o aumento das exportações do Brasil. O crescimento da China também está diminuindo. Por fim, nos últimos anos, o Brasil teve importações relativamente baixas. Mas se o país vai aumentar seu crescimento, haverá aumento de importações. Com isso, o superávit comercial não irá se manter no nível de agora. A possibilidade de um superávit menor com aumento do custo da dívida externa poderia frustrar os resultados otimistas que todos estão esperando.
Como o senhor avalia este ano e meio do governo Lula?
BAER: O Lula começou como a grande esperança da esquerda de uma grande reforma social no Brasil e com o medo do setor privado, especialmente internacional. A postura superortodoxa do governo provocou uma grande decepção na extrema esquerda e uma surpresa muito positiva nos mercados internacionais. O governo conquistou respeito internacional. Mas parece-me que o caminho do governo Lula é primeiro a ortodoxia, depois as reformas sociais para melhorar a distribuição de renda. A pergunta é se esta seqüência é possível. A boa vontade existe e o Bolsa Família é uma grande idéia. O problema é implementar. A burocracia sabe como fazer, há recursos para isso?
O governo vive um dilema?
BAER:Sim, existe um dilema. E há outro: uma margem de manobra muito pequena para gastos. Por outro lado, é muito interessante a sutileza do governo Lula. O presidente foi desde a juventude um líder sindical e teve de sobreviver negociando. Como presidente, Lula não assumiu uma posição de superioridade em relação ao Congresso. Tem um sucesso político que impressiona. Mas também tem problemas.
Quais são?
BAER:Um deles é o da reforma agrária. No PT, há muitos simpatizantes do MST, mas qual vai ser a posição do governo se as invasões continuarem? Se ficar do lado do MST, a reputação mundial do Brasil vai ser de não reconhecer a propriedade privada. E se a propriedade privada não é sagrada, a impressão será de que investir no Brasil é perigoso. Mas, apesar dos dilemas, tenho esperança de que Lula terá sucesso.
O país tem debatido a necessidade de renovar o acordo com o Fundo Monetário. O senhor acha que o Brasil pode abrir mão do FMI em 2005?
BAER: Gostaria que o Brasil não precisasse do FMI, mas o país ainda depende da ajuda dos grandes centros financeiros, que ainda olham o FMI para medir a confiabilidade do governo.
O Brasil e o mundo hoje se mostram muito impressionados com o desenvolvimento chinês. A China é mesmo um modelo a ser seguido?
BAER:A razão de a China ser tão popular é o crescimento, baseado parcialmente num capitalismo restrito ao Sul, baseado em salário de miséria. A China não é um modelo, é uma oportunidade para ganhar dinheiro rapidamente. Todas as companhias multinacionais de Japão, Taiwan, Europa e Estados Unidos estão indo para lá esperando ganhar dinheiro. Até agora, muitas não ganharam nada. O mundo capitalista de Estados Unidos, Japão e Europa vai ver mais cedo ou mais tarde que tem de ser muito cuidadoso ao colaborar com os chineses.
Como o senhor avalia o futuro das relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos, as negociações sobre a Alca?
BAER:Seria interessante se o Brasil virasse um bloco para negociar com os Estados Unidos e a União Européia de maneira mais igual. Infelizmente, isso até agora não aconteceu por duas razões. Primeiro, os EUA são muito hábeis. Recentemente, Brasil e Índia lideraram um bloco e os EUA fizeram ofertas muito vantajosas ao México, ao Chile. Com isso, eles logo conseguem neutralizar o processo. O segundo problema é que o Mercosul não está funcionando muito bem. Os quatro países não têm coordenação da política econômica. O ideal seria uma moeda única, como o euro, mas isso implica um banco central internacional do Mercosul. Mas nem o Brasil nem a Argentina nem o Paraguai nem o Uruguai estão prontos para diminuir a soberania econômica. A mesma coisa com as políticas fiscal e cambial. Toda essa rivalidade está enfraquecendo o Mercosul, e com o isso será muito difícil para o Brasil liderar uma aliança capaz de negociar com os EUA e a União Européia de maneira mais igual.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 6:48 PM
Augusto Nunes 22 08 204 O domador do tempo e dos ventos

Generalizações sempre incorrem no pecado do exagero, e freqüentemente conduzem a enganos grosseiros. Assim ocorre com estereótipos tão difundidos no Brasil. O político mineiro é discreto, manhoso, reservado, retraído, certo? Errado. A descrição talvez possa ser aplicada a alguém como Tancredo Neves. Mas como estendê-la a um Juscelino Kubitschek, também mineiro e tão loquaz, risonho, exuberante?
Tais adjetivos habitualmente revestem o estereótipo do político gaúcho. Parecem pertinentes na montagem do perfil de muitas figuras dos pampas – gente como Oswaldo Aranha, ou Flores da Cunha. Mas soam absurdos se utilizados para descrever o gaúcho Getúlio Vargas. Filho de São Borja, o maior político brasileiro não se enquadra nesse estereótipo. Não se enquadra em nenhum.
Singularidade à prova de clonagem, seria uma síntese de frutos do imaginário nacional. Foi o mais gaúcho dos mineiros. E o mais mineiro dos gaúchos.
Ministro do governo Washington Luiz, foi exemplarmente cauteloso. Derrotado na disputa pela Presidência, emergiu o lutador da fronteira.
Nos anos 20, aquele filho de terras conflagradas havia costurado, com habilidade e paciência tipicamente mineiras, uma inverossímil aliança entre “maragatos” e “chimangos”. Mas o conciliador vocacional convivia com o homem amadurecido num cenário beligerante, no Rio Grande das guerras civis. Em 1930, soube esperar a hora, e assumiu a chefia da revolução pronto para audácias gauchescas. Era o Getúlio fardado, sobre botas militares que o levariam ao poder.
Soube trocar de roupagem a tempo. Sempre soube o momento de mudar o figurino. Porque o destino lhe concedera a graça de adivinhar a direção e a força dos ventos. Como nenhum outro brasileiro, ele aprendeu a jogar com o tempo, e se antecipava a mudanças apenas esboçadas em horizontes invisíveis a outros. As coisas pareciam acontecer quando lhe convinham. Getúlio já estava à sua espera.
Assim seria também em agosto de 1954, embora o desfecho da tragédia aparentemente afirme o contrário. Trata-se de um paradoxo aparente. Getúlio não imaginou que ocorreria o atentado de 5 de agosto. É improvável que tenha adivinhado a extensão e a profundidade dos ódios acumulados contra um homem que sabia sorrir, que até gargalhava. Mas decerto não o surpreenderam o som da fúria, a proliferação das carrancas, a debandada de antigos aliados.
Ele tentou antecipar a movimentação política em torno da escolha do sucessor, mas a eleição ainda estava distante. Desta vez, o tempo não lhe serviu de trunfo. Então, decidiu inverter a direção dos ventos e retomar o controle do tempo. Como um mineiro desafeito a confidentes, decidiu sozinho como seria o ato derradeiro. Com a audácia do guerreiro gaúcho, engatilhou o revólver. E adiou por dez anos a festa dos golpistas.
A decisão é dos leitores
Um leitor selecionou títulos publicados nos últimos meses por jornais do Rio que, a seu juízo (e por falta de), considera merecedores do Yolhesman Crisbelles. A coluna, democraticamente, pinçou de todas as publicações alguns atentados à sensatez e decidiu entregar aos leitores a escolha do campeão da semana. Seguem-se os candidatos à taça:
JORNAL DO BRASIL - Depois de algum tempo, a água corrente foi instalada no cemitério, para a satisfação dos habitantes” Ela contraiu a doença na época que ainda estava viva”
O GLOBO - Apesar da meteorologia estar em greve, o tempo esfriou intensamente” - Os nossos leitores nos desculparão por esse erro indesculpável”
EXTRA - Os sete artistas compõem um trio de talento” - Parece que ela foi morta pelo seu assassino” - O acidente foi no triste e célebre Retângulo das Bermudas”
O DIA - A vítima foi estrangulada a golpes de facão” - O tribunal, após breve deliberação, foi condenado a um mês de prisão” - O velho reformado, antes de apertar o pescoço da mulher até a morte, se suicidou”
Com um beijo e uma lágrima
Na primeira metade dos anos 80, corriam soltas as articulações que resultariam na vitória de Tancredo Neves num colégio eleitoral desenhado para eleger algum favorito do governo militar. Um dos endereços mais freqüentados pelos arquitetos da grande frente oposicionista era o apartamento 101 do bloco D da SQN. (Em Brasília, naturalmente. Só na cidade inventada por Oscar Niemeyer existem endereços assim.) Ali morava o deputado federal Thales Ramalho.
Pernambucano de fala mansa, aparência suave de tio que protege mesmo sobrinhos destrambelhados, Thales ficava em casa a maior parte do tempo. Com os movimentos afetados por problemas de saúde e pelas seqüelas de um grave acidente automobilístico, passou a sair menos ainda. Raramente ia aos outros. Os outros é que iam a Thales. Entre eles se incluía Tancredo Neves. Pouco inclinado a revelações, Tancredo fez de Thales um dos seus cofres de segredos.
Na edição de 18 de agosto, com o brilho de sempre, o grande Villas-Bôas Corrêa desenhou o perfil de Thales Ramalho, morto em Recife, dias antes, aos 81 anos. “Discreto, quase em sigilo, o ex-deputado retirou-se da vida como viveu”, escreveu Villas-Bôas.
A imprensa virtualmente ignorou a partida do esplêndido político. Thales levou para o túmulo fascinantes episódios da saga brasileira. Outros ficaram nos cadernos.
Os cadernos de Thales foram (e são) objeto do desejo de qualquer jornalista interessado nos bastidores da política nacional. Ali, em anotações manuscritas, o parlamentar pernambucano registrava conversas, resumia retratos, fazia observações sempre argutas, arriscava prognósticos que hoje lembram profecias. E resumia histórias que testemunhara ou vivera como integrante do elenco principal. Ouvi algumas.
Ele gostava de contar as protagonizadas por Tancredo. “Aprendi muita coisa com ele”, repetia. “Foi um sábio.” Um dos episódios preferidos remontava à noite em que Tancredo visitou-o para conversar a dois e encontrou a casa cheia. Era a terceira tentativa frustrada. Tancredo chamou-o de lado e sussurrou:
- Pare de receber tanta gente, Thales.
- O problema é que eles telefonam e dizem que estão vindo me visitar – ponderou. - Diga que você faz questão de homenageá-los indo à casa de cada um. Beba o uísque deles, coma a comida deles e escolha a hora de ir embora. Isso é que é bom.
- Mas estou quase paralítico – lembrou Thales, então prisioneiro de uma cadeira de rodas.
- Melhor ainda – decidiu Tancredo. – Eles vão ficar ainda mais comovidos.
Na quarta tentativa, os dois conversaram a sós. Thales se livrara dos candidatos a visitante com a desculpa de que saíra. Mas adorou a lição.
Cabôco Perguntadô
Primeiro, o Cabôco Perguntadô espantou-se com a explicação de Lula para a viagem ao Gabão. “Fui lá aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição.” O Cabôco já queria saber se Lula anda pensando em virar ditador quando o chanceler Celso Amorim fez a ressalva esperta: fora apenas “um chiste”. Já intrigado com outra trapalhada de Lula também apresentada como “chiste” – chamar de “covardes” os profissionais contrários à criação do Conselho Federal de Jornalismo –, o Cabôco anda cutucando amigos com a pergunta: por que não aproveitar o embalo e instituir também um Conselho Nacional de Presidência? As atribuições da novidade seriam “orientar, disciplinar o exercício do cargo de chefe do governo federal”.
Gordos e malucos
Ao chamar Luiz Paulo Conde de “baleia encalhada”, Cesar Maia só não viajou na maionese porque pobres são magros, ricos obesos vão começar o regime amanhã e o resto acha o prefeito gordo também.
augusto@jb.com.br
[22/AGO/2004]
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 6:42 PM
Merval Pereira 22 08 2004 O ICMS da discórdia

Merval Pereira
O governo do Estado do Rio vai insistir na cobrança, aprovada pela Assembléia Legislativa no ano passado, da taxa em 18% de ICMS na extração do petróleo no estado. Apesar de sancionada pela governadora, ela não entrou em vigor, e está sendo contestada como inconstitucional pelo procurador-geral da República no Supremo Tribunal Federal. A despolitização da questão, que no ano passado foi exacerbada pela governadora dentro da disputa pela instalação de uma refinaria na Petrobras, pode favorecer a aprovação da medida.
A governadora começou sua luta pela mudança da legislação do ICMS sob a premissa de que o Rio era injustiçado, pois apenas o petróleo e a energia elétrica são tributados no local de consumo, o que prejudicaria o estado, responsável por 80% da produção nacional.
Antes da Constituinte de 88, o imposto era federal e nenhum estado ganhava nada sobre petróleo, energia elétrica e telecomunicações. O que os legisladores fizeram foi tirar o imposto da União e dar para os estados e municípios. Como a maioria dos estados importa petróleo, não houve condições políticas de colocar o ICMS cobrado na origem para todos os produtos.
O relator da Constituinte foi o então deputado federal Nelson Jobim, hoje presidente do STF, que conta que houve consenso no sentido de que o ICMS deveria ser cobrado na origem, mas surgiram ressalvas quanto a dois assuntos — energia elétrica, produzida por recursos hídricos, e petróleo.
O argumento encontrado para justificar não cobrar ICMS na origem desses dois produtos foi, segundo declarações de Jobim, que toda a produção de petróleo realizada no Rio de Janeiro, ou toda a produção de energia elétrica no Paraná ou Pará, era decorrente de investimentos da União, porque o monopólio era da União. “Toda arrecadação do país contribuiu para aquela produção”, salientava Jobim.
E é exatamente nesse ponto que se baseia a defesa do Estado do Rio. O pleito está sendo defendido no Supremo dentro de uma nova interpretação jurídica, que afirma que a partir da emenda constitucional de 95, que passou a permitir a contratação da pesquisa e da lavra do petróleo junto a terceiros, transferindo-lhes a propriedade do produto da lavra, deixou de existir o monopólio da União sobre o petróleo, o que justificava a não cobrança do ICMS.
Na defesa, é citado o contrato de concessão assinado entre a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e a Petrobras, em 1998, que define o momento da transferência de propriedade: “Ao concessionário somente caberá a propriedade do petróleo e gás natural que venham a ser efetivamente produzidos e por ele recebidos no ponto de medição”. É a partir daí, do “ponto de medição” nas plataformas, que o estado quer cobrar o ICMS das empresas exploradoras de petróleo.
Uma outra questão que surgiu na ocasião em que o decreto foi sancionado pela governadora Rosinha foi a alegação de que essa tributação poderia simplesmente parar a maior indústria do estado, o setor de petróleo e combustíveis, responsável por cerca de 25% da arrecadação de impostos (a maior parte proveniente da Petrobras), e prejudicar o recolhimento dos royalties, que gera cerca de R$ 2 bilhões anualmente.
Os produtores de petróleo alegam que a taxa de retorno do investimento é de 3% a 4%, e o novo imposto de 18% tornaria deficitária a operação no estado. Tanto o procurador-geral da República como o Instituto Brasileiro de Petróleo, que participa da ação de inconstitucionalidade no Supremo, alegam que a cobrança do ICMS provocaria prejuízo à economia e danos à indústria, onerando o preço da produção de petróleo.
Em sua defesa, o governo do Rio afirma que está prevista na legislação a situação em que, à saída tributada de um produto -— no caso o petróleo -— sucede-se outra não tributada, a alíquota continuaria zerada, portanto, na transferência desse petróleo para outros estados — , seguida de uma terceira operação novamente tributada. Desse modo, a cobrança do ICMS na fase de extração do petróleo em nada oneraria seu custo de exploração ou o preço final do produto, pois seria descontada na primeira etapa não isenta de tributos.
A cobrança seria “um mero instrumento de alocação dos recursos arrecadados entre os diversos entes arrecadadores, em consonância com os princípios que regulam o pacto federativo”. Em outras palavras, o ICMS cobrado pelo Rio será perdido por outro estado — a maior parte do petróleo extraído no Rio vai para São Paulo — mas não acrescentado ao preço final do produto.
Com relação aos royalties do petróleo, que geram R$ 2 bilhões anuais, o que consta é que eles foram definidos pela Constituição de 88 para compensar a não cobrança de ICMS na origem, ou seja, na extração do petróleo. Caso a cobrança do ICMS prevalecesse na origem também para o petróleo, o Estado do Rio não poderia receber os royalties, pois estaria recebendo duas vezes pelo mesmo produto.
O governo do estado, na mesma defesa da constitucionalidade da cobrança do ICMS, tem argumentação jurídica que contesta essa tese. Alegam seus advogados que os royalties foram instituídos já na Lei 2004 de 1953, que criou a Petrobras. Segundo eles, os royalties foram criados para compensação financeira “das deseconomias incorridas pelas atividades ligadas à exploração petrolífera, em especial às relacionadas com a preservação do meio ambiente”. Isto é, pelas despesas que a extração do petróleo obriga o estado a realizar.
Porém, mesmo que a legislação dos royalties fosse alterada devido à cobrança do ICMS, contas do governo demonstram que o estado continuaria ganhando mais apenas com a arrecadação do novo imposto.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:28 PM
Miriam Leitão 22 08 2004 Preso no gargalo

O debate era sobre logística, em São Paulo, sexta-feira, às quatro horas, e o aeroporto do Rio amanheceu fechado. Se fosse necessário mais um caso para mostrar o caos logístico do Brasil, bastava pegar a ponte aérea, ir ao debate e voltar ao Rio no mesmo dia. O absoluto caos que dominou os dois aeroportos nesta sexta-feira foi tão eloqüente quanto o debate em que, por duas horas, se falou no colapso que se aproxima. No Rio, é a terceira vez numa semana que o aeroporto fecha durante toda a manhã, produzindo uma seqüência de eventos que, em cadeia, foi emperrando todo o trânsito de passageiros pelo Brasil. Conexões perdidas, reuniões canceladas, desinformação, tudo tumultuou a vida das milhares de pessoas que circulavam na sexta-feira pela rota mais movimentada do país. Não se pode proibir o nevoeiro de cobrir o Pão de Açúcar pela terceira vez numa semana. Mas seria prudente, pela repetição do fenômeno, pensar-se, por exemplo, em ter um Plano B, pelo aeroporto do Galeão. O nó formado no Rio de manhã foi em ondas interrompendo e complicando o transporte aéreo de passageiros no país inteiro. No vôo de volta, às dez da noite, no sentido Congonhas-Santos Dumont, o piloto pedia desculpas pelo atraso culpando ainda o nevoeiro do Rio, pela manhã.
No debate, durante duas horas e meia, representantes dos vários segmentos da sociedade e empresários reclamaram de tudo: falta de navios, contêineres, espaço nos portos, investimentos em ferrovias, regras para investimento, rodovias em boas condições.
A Receita Federal foi a campeã das críticas. O que se pede da Receita é que, ao menos, esteja disponível em horário compatível com o mundo just in time . O expediente dos fiscais do órgão segue o horário normal de funcionário público e, no fim de semana, fecham-se as portas. O que os exportadores, administradores de terminais, empresas de transporte gostariam é que tudo funcionasse no Brasil como na maioria dos países: 24 horas por dia, sete dias na semana. Valdir Santos, presidente do Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo, disse que, se os funcionários da Receita estivessem lá a postos nas segundas-feiras, às 11 da manhã, ele já seria um despachante feliz.
A crônica falta de contêineres também poderia ser amenizada se a Receita liberasse as cargas apreendidas, “em perdimento”, como eles dizem, e que são mantidas em contêineres ocupando espaço no porto.
— Hoje eu procuro um contêiner, vivo ou morto, e não encontro um sequer disponível no Brasil. E sei que existem inúmeros deles com carga apreendida — disse Roberto Prudente, diretor da Associação Brasileira de Empresas de Transporte Internacional.
Sérgio Salomão, da Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres, disse que já foram apresentadas à Receita idéias para a estocagem dos produtos apreendidos.
O crescimento da China é que está fazendo tudo desaparecer: do navio ao contêiner. Pedro Henrique Garcia de Jesus, presidente do Centro Nacional de Navegação Transatlântica, entidade que representa os armadores, acredita que a escassez de navios vai durar mais dois anos. Ele defende a retomada da construção naval no Brasil afirmando que, para não repetir erros do passado, em que o Estado sempre pagava a conta de estaleiros falidos, o setor propõe ao governo a criação de um fundo garantidor, o qual depende apenas de decisões burocráticas.
Sérgio Bacci, secretário de Fomento para Ações de Transportes no Ministério, respondeu às críticas lembrando que o atual governo encontrou o setor de transporte em situação lamentável, por falta de quadros, recursos e informações. Disse que tudo está sendo remontado e que, para tratar do tema, formou-se uma Câmara Setorial na Casa Civil. Da platéia, alguém quis saber por que o PT não se preparou antes, sabendo que ocuparia o poder. E também perguntaram o que fizeram os grupos internos do partido que cuidavam do planejamento para enfrentar os problemas ao assumirem o governo. Até agora, não se conseguiu fazer uma licitação de concessão de um quilômetro sequer de rodovia.
Na espera interminável, os passageiros se acotovelavam na apertada sala de embarque do Rio, afogando-se no mar de desinformação que se espalhou. Tudo o que os atendentes das companhias aéreas disseram durante horas foi a frase: “Não há previsão.” Os passageiros descobriram que o importante não era a falta de lugar para sentar, era a falta de lugar para ficar em pé, que fosse. O melhor ponto era ficar em pé perto do portão ouvindo as histórias contadas pelos passageiros. Um deles chegou às nove para pegar o vôo das dez e meia da manhã para São Paulo, onde faria uma conexão. Foi convencido pelos atendentes que o vôo não sairia tão cedo do Rio e que deveria mudar para outro vôo. Enquanto ele foi trocar o bilhete, o vôo dele saiu e ele passou a tarde à espera.
No caminho da volta, mais irracionalidade. O novo aeroporto de Congonhas é amplo, agradável, com cara de novo. De velha mesmo só a gestão desordenada das empresas que atuam em viagens aéreas no Brasil. Os passageiros aguardavam num terminal registrado no cartão de embarque até que, de repente, uma voz avisava que o avião sairia em outro portão. Passageiros se cruzavam nos novos corredores em correria desabalada parecendo mais esportistas em prova de atletismo. As companhias aéreas não informavam sobre vôos, atrasos e portões. A confusão, às nove e meia da noite, no aeroporto de Congonhas, era tal que o serviço de voz fez um aviso insólito:
— Senhores passageiros, o vôo está atrasado porque a aeronave está em órbita.
A logística — seja a de passageiros ou de cargas — tem ineficiências ainda hoje que conspiram contra qualquer cenário de retomada do desenvolvimento sustentado no Brasil.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:27 PM
LUÍS NASSIF 22 08 2004 A última noite de Vargas

Durante anos de convivência, o embaixador Walther Moreira Salles tinha uma preocupação especial com sua biografia. Queria deixar registradas as impressões sobre os principais homens públicos com os quais conviveu. Eram aulas sucessivas sobre o país, da parte de quem, dos anos 30 aos 90, testemunhara todos os episódios da história com olhos contemporâneos. Indagado sobre qual o maior brasileiro que conhecera, nem vacilava: Getúlio Vargas. O pensamento começa a voar. Dr. Walther parece se esquecer da minha presença ali. Agora, está com San Thiago Dantas em um carro, ouvindo a rádio Globo, quando a programação é interrompida pela "notícia extraordinária": Vargas havia se suicidado. Imediatamente San Thiago ordenou ao chofer que rumasse para o Palácio do Catete. Eram 20h30 quando ambos entraram no Palácio. A essa altura as rádios informavam que "O Globo" e a "Tribuna da Imprensa" estavam cercados por populares enfurecidos. San Thiago rumou para o "O Globo", cercado por uma multidão que uivava de dor e ódio. Walther subiu para o último andar do Palácio. Não chegou a entrar no quarto onde Vargas se suicidara. O Palácio era grande e nele contrastavam fortemente uma confusão de pessoas correndo de um lado para o outro e a sensação de vazio, de solidão. Mais tarde, começaram a chegar pessoas. Juscelino foi o único governador a se apresentar, com Amaral Peixoto, casado com Alzira, a filha predileta de Vargas. Walther deixou o Palácio por algumas horas, foi à sua casa e retornou logo depois. Cumprimentou Alzira e Amaral, não conseguiu ver dona Darcy e permaneceu no velório até a hora da partida, dividindo um banquinho no primeiro andar, com Oswaldo Aranha, em longas reflexões sobre o processo de isolamento de Vargas. As suspeitas de conspiração internacional vazavam por todos os poros da República e impregnavam as paredes do Palácio. Aranha reiterava acusações sobre a queda nos preços do café, atribuindo-a a pressões externas. Conhecedor do mercado, Walther não via fundamento em suas acusações. O Brasil havia montado uma manobra especulativa que logrou elevar os preços do café a 86 centavos, mas não conseguiu sustentá-los. A operação foi estimulada pelo governo e financiada pelo Banco do Brasil. A Bolsa de Nova York abriu investigações sobre as operações brasileiras, que ajudaram a precipitar a queda das cotações. Aranha acreditava em conspiração internacional e em disco voador. Às vezes o cansava com aquela conversa. Em certo momento, Walther nem mais o ouvia. Seu pensamento, agora, estava no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, onde, no último verão antes da tragédia, teve o último encontro com Vargas. O mais polido dos homens que conhecera conservava ainda seu senso de humor e a risada inigualável. Mas demonstrava certa melancolia e solidão. Alguns meses antes, quando Walther lhe pediu que o dispensasse das funções de embaixador, Vargas comentou a respeito de um deputado governista, que o acusara de ser "mais um embaixador americano em Washington". Walther não quis saber quem era. "Embaixador, o senhor não pergunta quem é o deputado?", estranhou Vargas. "Eu já sei, porque tivemos incidente semelhante no Itamaraty." Era Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria. "Mas o senhor sabe qual foi minha resposta?" "Não." " Eu disse a ele que tinha a Câmara para denunciar, não a mim." E soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás. Depois, convidou Walther para jantar. O embaixador disse que era uma grande honra, mas pedia que telefonasse para uma casa para a qual tinha um compromisso agendado. Vargas interrompeu: "Então meu convite não é mais válido. O senhor é moço, precisa se divertir no convívio de gente agradável." "Mas gostaria de jantar consigo." "Não mais." Desceram no elevador, saíram pelo Salão de Despachos, Na alameda, entre o Palácio de Rezende, Vargas pôs o chapéu e cruzou os braços atrás das costas: "Boa noite." E atravessou sozinho para seu jantar solitário.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:25 PM
MAÍLSON DA NÓBREGA Primitivismo e irresponsabilidade no Orçamento

MAÍLSON DA NÓBREGA O ESTADO DE S.PAULO Domingo, 22 de agosto de 2004
Primitivismo e irresponsabilidade no Orçamento
A Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou proposta de autoria do deputado Roberto Gouveia (PT-SP) de vincular 10% das receitas correntes da União para a saúde. Seduzidos por objetivos nobres, a definitiva aprovação do projeto criará novas dificuldades à gestão orçamentária e ao crescimento do País.
Os políticos brasileiros, com honrosas exceções, nunca levaram a sério o Orçamento. São herdeiros da cultura que dava aos reis ibéricos a capacidade de fazer o que quisessem em questões fiscais, restando ao Parlamento criar brechas para atender seus próprios interesses. Na Inglaterra, ao contrário, o Parlamento nasceu para limitar o poder de gastos dos monarcas. A tradição passou às nações que eram suas colônias.
Nos EUA, o Congresso costuma negar pedidos de aumentos de gastos do presidente. No Brasil, ao contrário, é o Executivo quem tem de barrar o Legislativo, pois se depender deste as finanças estarão sempre em frangalhos. O Executivo tem seus erros, mas perde de lavada nesse campeonato. Veja-se o festival das emendas anuais ao Orçamento. Apesar das restrições inscritas na Constituição, o relator sempre dá um jeitinho de inflar as receitas e acomodar pretensões paroquiais.
A primeira reação contra esse comportamento veio em 1926. Emenda constitucional determinou que o Orçamento trataria apenas da receita e da despesa, uma norma acaciana que ainda sobrevive no Artigo 165 da atual Constituição: "A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa". O alvo eram as "caudas orçamentárias", que compreendiam novas despesas e o diabo a quatro, como nomes de ruas a promoção de servidores. Rui Barbosa falava em "orçamentos rabilongos".
Nos anos 1950, surgiu uma nova praga, a vinculação de receitas. A primeira se destinou à educação e deu a deixa para outras ervas daninhas, que morreram com o antídoto da Constituição de 1967. Ficou proibida a vinculação de impostos a órgão, fundo ou despesa, norma que resistiu 16 anos até receber o primeiro furo com a emenda que destinou 13% dos impostos para a mesma educação. A Constituição de 1988 ampliou o percentual para 18% (25% nos Estados e municípios).
A regra virou uma tábua de pirulitos. Além da educação, há vinculações também para a saúde e a prestação de garantias. O relator do projeto de reforma tributária propõe novos furos, até para a Receita Federal.
O apelo da vinculação é enorme. Diz-se que ela protegerá a área social de cortes para atender o FMI e pagar juros aos banqueiros. Fala-se que ela obrigará o governo a olhar pelos pobres. A conquista do apoio popular fica fácil. Na verdade, a vinculação não tem impedido o pagamento dos juros nem o cumprimento de metas fiscais. Apenas enrijece o Orçamento.
Diferentemente do que se apregoa, os juros são devidos aos milhões de brasileiros que investem suas poupanças no mercado e nos fundos de pensão.
Não pagar seria romper contratos e gerar grave crise de confiança.
Renegociações e calotes na dívida pública aconteceram no Brasil e alhures, em circunstâncias distintas da atual e com enormes efeitos negativos. O cumprimento de metas fiscais, como finalmente o PT aprendeu, não visa a satisfazer o FMI, mas a evitar que a relação entre a dívida pública e o PIB adquira uma trajetória explosiva e desastrosa.
A experiência mostra que a vinculação de receita a despesa cria uma cultura de acomodação e provoca desperdícios. Não precisando provar a prioridade de seu caso, as áreas e as organizações beneficiárias não têm incentivos à busca da eficiência na gestão dos gastos nem da eficácia na sua destinação.
Ao engessar o Orçamento, as vinculações dificultam a condução de políticas públicas e o crescimento. As gerações de hoje decidem pelas de amanhã.
Atualmente, mais de 90% das receitas da União têm destinação obrigatória, mas se incluirmos nesse conceito os gastos minimamente necessários em defesa, segurança, infra-estrutura, custeio administrativo e apoio às exportações, à agricultura, às artes e às ciências, a soma já passa de 100%.
Uma tragédia.
Existem inúmeras formas de priorizar a educação, a saúde e outras áreas, como fazem os países sérios. A técnica da vinculação é a mais grosseira e primitiva e por isso não faz parte do cardápio desses países.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:22 PM
Dirceu viveu com nome falso até ser anistiado

Dirceu viveu com nome falso até ser anistiado
DA REDAÇÃO FOLHA DE S.PAULO
Banido do Brasil em 6 de setembro de 1969, o atual ministro José Dirceu (Casa Civil) voltou do exílio duas vezes. O retorno oficial ocorreu em dezembro de 1979, após a aprovação da anistia. Mais tarde, ele revelou que havia vivido clandestinamente em Cruzeiro do Oeste (PR) de 1975 a 1979, graças a uma operação plástica que lhe deixou o nariz adunco e os olhos puxados, disfarçado sob a identidade falsa de Carlos Henrique Gouveia de Melo. Apresentou-se como um economista, filho de judeus, que tinha vindo do interior de São Paulo por ter brigado com a família. Apelidado de "Pedro Caroço", ele fez amigos e se casou com Clara Becker, dona de uma confecção de roupas, com quem teve um filho, José Carlos. Revelou-se um bom administrador e ampliou os negócios. No dia 29 de agosto de 1979, um dia depois de ter sido sancionada a Lei da Anistia, Carlos Henrique chamou sua mulher, que cuidava do filho recém-nascido, e lhe mostrou um jornal que trazia uma foto dos militantes de esquerda trocados pelo embaixador americano seqüestrado Charles Elbrick em 1969. Apontou para um jovem magro e falou: "Está vendo esse aí? Esse aí sou eu". "Foi um susto para todo o mundo quando "Carlos" contou quem ele era", disse Clara. Dias depois, ele deixou a mulher e o filho e voltou a Cuba, onde fez uma segunda operação plástica para desfazer a anterior e desceu no aeroporto de Viracopos com outros anistiados, como se não tivesse voltado para o Brasil desde 1969. "Tive de acompanhar tudo pela TV", revelou Clara em 2003.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 1:04 PM
JANIO DE FREITAS 22 08 2004 A denúncia do denuncismo

Bem que o seu presidente o alertou, leitor distraído, contra o denuncismo praticado pela imprensa brasileira - ou, mais precisamente, pelos jornalistas sem vínculo com o poder. Sempre desejosa de aprimorar-se, nos últimos dias a imprensa levou o seu mau hábito ao paroxismo: voltou o denuncismo contra si. E por iniciativa de um jornalista, que denunciou a trapaça jornalística, de sua co-autoria, que transformou em US$ 1 milhão o US$ 1 mil movimentado pelo então deputado Ibsen Pinheiro. E com esse escândalo motivou a cassação injusta do deputado. Mas a atual denúncia do denuncismo passado, cá entre nós, não é denúncia e tem tudo de farsa. A verdade, comprovável por documentos oficiais, é que Ibsen Pinheiro não foi cassado por ter a CPI do Orçamento (mais tarde "CPI dos Anões") considerado inaceitável a "transferência de US$ 1 milhão de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa Econômica para uma agência do Banrisul". O valor, no caso, poderia ser qualquer um, e o problema seria o mesmo. Porque não se tratou de movimentação para uma agência qualquer, como faz crer o denuncismo atual do denuncismo passado. A CPI constatou que Ibsen Pinheiro transferiu seu dinheiro para o Uruguai, salvando-o do seqüestro das contas e da poupança nas vésperas do seqüestrador Plano Collor. Ibsen Pinheiro era então o prestigiado líder do PMDB na Câmara e foi quem quebrou a demorada resistência peemedebista para aprovar o seqüestro do dinheiro privado, causa de desgraças inumeráveis, pessoais e empresariais. Em seu depoimento na CPI, Ibsen Pinheiro atribuiu a transferência a um pagamento que, porém, recusou-se a dizer de que ou a quem. E deu como destino a cidade brasileira de Santana do Livramento. Não por acaso, cidade geminada à uruguaia Rivera, na qual a CPI constatou localizar-se a agência destinatária da transferência feita pelo líder do PMDB. Dinheiro e bens produziram respostas de Ibsen Pinheiro, na CPI, que mais o arruinaram do que esclareceram. O depósito feito em sua conta pelo também deputado Genebaldo Correa, um dos "anões" de maior atividade malandra, continuou inexplicado. Ibsen Pinheiro acabou apelando para uma tal caminhonete que teria vendido a Genebaldo, mas comprado de Genebaldo, que comprou de Ibsen e depois vendeu a Ibsen, enfim, uma caminhonete que se mudou muito sem deixar pista alguma de sua inconstância. Contribuiu também, para a cassação de Ibsen Pinheiro, um problema institucional que ele não transpôs: o presidente da CPI, Jarbas Passarinho, recebeu documentos do Senado comprovando que a primeira CPI do Orçamento, requerida em 1990, acabou arquivada em 92 porque o então presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, não cumpriu formalidades dele esperadas. Ao depor, acusou pelo arquivamento o senador Mauro Benevides, seu colega no PMDB. Logo a CPI concluía que Benevides cumprira seu papel e que Ibsen, portanto, bloqueara a CPI em causa própria. Ibsen Pinheiro, deve-se reconhecer, foi até mais cauteloso do que isso: como presidente da Câmara, tratou de demitir o funcionário que fez a primeira denúncia da corrupção dos "anões do Orçamento", mais tarde repetida, afinal levando em 93 à CPI, pelo também funcionário José Carlos dos Santos, aquele acusado de matar a mulher. A CPI teve mais à disposição de suas conclusões sobre Ibsen Pinheiro, como um episódio que não apareceria no exame de movimentação bancária: a compra de um imóvel com dinheiro levado em mala. Informação espontânea do ex-dono do imóvel, que descreveu os pormenores do negócio e do espanto ao ver o sóbrio deputado com a evidência da origem inconfessável do dinheiro. Antes dessa narrativa, Ibsen Pinheiro deixara sem resposta, em seu depoimento na CPI, as perguntas sobre a procedência dos recursos para a compra do imóvel. Nelson Jobim, que já era como deputado o Nelson Jobim de hoje no Supremo Tribunal Federal, articulou-se com o deputado Abi-Ackel para compelir os líderes do PFL, PMDB, PPR e PSDB na Câmara a mobilizarem-se em conjunto para evitar a prorrogação da CPI do Orçamento, o que sustaria várias investigações. Seu êxito foi apenas relativo. A CPI esteve sempre sob fortes pressões assim, partidas até dentro dela. No final, conveniências políticas e interesses pessoais salvaram da cassação vários parlamentares, mas os cassados não o foram sem provas seguras e abundantes. E foi por decisão do plenário, e não da CPI, que se deram as cassações. Ibsen Pinheiro foi cassado pelo conjunto de sua obra, e não, como pretende a "corajosa" autodenúncia de uma leviandade jornalística, pela hipotética movimentação de US$ 1 milhão ou de US$ 1 mil. O que seria impossível porque, entre outros motivos, a CPI ajustou prontamente os valores corretos, fossem em dólares ou em novos cruzados, das contas de Ibsen Pinheiro - agora em campanha para retomar, a partir do Rio Grande do Sul, a carreira política. Na qual seus deméritos identificados pela CPI não negam os muitos méritos que teve como deputado federal. Todos os fatos e dados deste artigo estão documentados, foram publicados à época e jamais contestados. Nem mesmo pelo atual denuncismo contra o denuncismo da imprensa, que preferiu ou precisou não os lembrar.
Resposta Desfez-se a expectativa, aqui anotada, sobre o voto do recém-empossado ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, quanto ao desconto de previdência nas aposentadorias do funcionalismo. Como advogado e jurista, Eros Grau foi autor de recente parecer contrário à taxação previdenciária dos inativos, por considerá-la inconstitucional. Como recém-nomeado por Lula para o STF, aí votou pela cobrança. Eros Grau cobrou, a uma associação de professores, R$ 35 mil pelo parecer. Pelo seu voto governista, como ministro estará recebendo, neste mês, a metade do seu preço de parecerista. Eros Grau ficou, de fato, muito mais barato. Finda uma, surgiu outra expectativa, sem promessa de solução próxima. O político-juiz Nelson Jobim votou, claro, com o governo, sob o poderoso argumento de que derrubar a nova taxação dos inativos causaria "extraordinário rombo" nas contas governamentais. Causar, não causaria, porque o rombo já existe. E agora se trata de saber o seguinte: ministro do Supremo lida com contabilidade ou com Direito, Constituição, direitos e Justiça?

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 1:01 PM
Gabeira revê 79 e ataca "sonho burguês" do PT

Gabeira revê 79 e ataca "sonho burguês" do PT
Ex-guerrilheiro e precursor da "política do corpo" , deputado diz que narcisismo já teve papel progressista e sustenta que Lula e o PT agem como "emergentes" do poder
PLÍNIO FRAGA DA SUCURSAL DO RIO
No verão de 1979, Fernando Paulo Nagle Gabeira -terrorista para o regime militar que o exilou por nove anos- chegou às areias de Ipanema com idéias escaldantes e uma tanga mínima. Havia desistido de incursões revolucionárias como o seqüestro do embaixador americano dez anos antes -que o levou à cadeia e depois ao exílio- para defender uma tal "política do corpo", que pressuponha do defensor "o desemperrar da cintura de macho latino", como se dizia à época. Naquele mesmo ano, lançou "O que É Isso, Companheiro", livro em que descrevia a perplexidade da esquerda ortodoxa com comportamentos heterodoxos para aqueles tempos. Em 1980, anunciou o "crepúsculo do macho", engajou-se na defesa dos direitos de minorias e estimulou a renovação da agenda política nacional. Vinte e cinco anos depois, o deputado federal Fernando Gabeira, 63, diz que o exílio o enriqueceu filosoficamente. "Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites." Vive hoje a "angústia do tempo futuro". Está sem partido. Saiu do PT por discordar dos rumos do governo Lula e amadurece a idéia de deixar a política ao final de seu mandato, em 2006. Chama os petistas de "deslumbrados, emergentes, aburguesados, impostores históricos". Na eleição deste ano, Gabeira apóia César Maia (PFL) à reeleição à Prefeitura do Rio. Descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será do país. A presidência para Lula é uma ascensão material
Folha - A Anistia faz 25 anos, ao lado do início do que se batizou de "política do corpo". Como vê hoje uma e outra? Fernando Gabeira - No momento da Anistia, conjuntamente com a ruína das religiões, havia o debacle das grandes explicações políticas do mundo, sobretudo da grande religião laica que era o marxismo. E surgiam reivindicações e lutas que o marxismo, por suas características, não podia dar conta delas: liberdade do corpo, a questão das mulheres, do sexo, do racismo. Tudo isso ganhava força em razão de duas componentes novas: o indivíduo e o presente, o aqui-e-agora. Não havia mais o futuro que a religião dava -o reino dos céus. E muito menos o fim da exploração do homem pelo homem -o paraíso socialista. Vinte e cinco anos depois, percebeu-se que a própria idéia do desenvolvimento do corpo, de todas as aspirações individuais, passou a ser também um mito.
Folha - O sr. vê acúmulo de frustração no campo político? Gabeira - Lutamos para a ascensão de um governo de esquerda, sem perceber que o instrumento de mudança que era o Estado estava cada vez menos importante. É estreita a margem de manobra no mundo globalizado.
Folha - Lula e o PT decepcionam? Gabeira - Existe hoje a absolutização do desenvolvimento econômico e o fetiche matemático. Estamos crescendo 4%! Não se pode em razão do crescimento de 4% deixar de problematizá-lo. O que estamos vendo é a utilização disso como fetiche para evitar outros temas. Blindam o Henrique Meirelles, porque não podemos reter o crescimento econômico. O Delúbio Soares, ao sair do Palácio do Planalto, foi questionado porque havia ido até lá depois de tanta agitação na imprensa a respeito da imagem dele. E ele respondeu que o importante era o crescimento econômico. Qualquer questionamento ético é contra o crescimento econômico.
Folha - O que é o projeto petista? Gabeira - Existe uma vontade deles de se perpetuar no poder. Ficou muito claro que, ao chegarem ao governo, eles descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será feito com o país. A sucessão de frases como as do José Dirceu - "a principal tarefa é a reeleição de Lula"- ou do próprio Lula -de querer saber como ficar 37 anos no governo- mostra isso. Eram pessoas que viviam como uma certa dificuldade e de repente encontram esse universo de ascensão material. A presidência para o Lula é uma ascensão material. Ele desfruta de recursos e possibilidades materiais muito maiores do que quando estava na oposição. Em primeiro lugar, eles vão tentar canalizar o que puderem de excedente para um trabalho social que mantenha as populações mais pobres na condição de clientes. Em segundo lugar, vão utilizar toda a força que têm -a sedução ou a ameaça- para garantir que a mídia os consagre. Na mídia, eles não dão tanta importância aos jornais. Dão à TV. Vão tentar essa manobra do pão e circo. Até que ponto vai dar certo, vai depender da capacidade deles.
Folha - O sr. viveu nove anos no exílio e nunca pleiteou indenização, como faculta a lei. Por quê? Gabeira - Considero que algumas pessoas, que foram injustiçadas, perseguidas, de fato mereciam aposentadoria especial e indenização. No meu caso, não perdi nada com esse processo. Fui para o exílio e voltei enriquecido. Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites. Há pessoas que efetivamente foram esmagadas que precisam dessa reparação. Mas ela deveria seguir critérios para não ser politicamente desvairada. Se você lutou por uma sociedade com menos diferenças é contraditório receber uma indenização de R$ 20 mil por mês como alguns tiveram. Indenização essa por ter lutado por uma sociedade de iguais! Choca-me o fato de o PT ter passado na frente sindicalistas que aguardavam indenização. Pessoas bem colocadas, que não tiveram um confronto tão grande com a ditadura. Deveriam estabelecer critérios mais rígidos. Os petistas do governo mostraram que eram apenas emergentes, que estavam apenas querendo chegar à burguesia. O sonho deles era esse.
Folha - Seu rompimento com o PT parece definitivo. Gabeira - Tenho a impressão de que não votarei nunca mais no PT. Não gosto de impostores.
Folha - Como se dizia nos anos 70, eles venceram? Gabeira - Não diria que eles venceram. Já não sei mais quem são eles e quem somos nós. Não tenho essa visão de que estamos em decadência, cada vez piores. Tenho a visão de que é preciso avançar. Não há mais no horizonte nenhuma transformação radical. O que há é a administração do real e um avanço estratégico da democracia. Eu, surpreendentemente, sempre me vejo na oposição.
Folha - "O Que É Isso, Companheiro" completa 25 anos também. Imaginava o bordão tão atual? Gabeira - "O que é isso, companheiro" expressa uma perplexidade com atitudes que você toma e que dificilmente são encaixadas no quadro de esquerda. No caso atual, "o que é isso, companheiro" vale porque não compreendemos se estamos dando um passo adiante. Não sinto que o Brasil tenha dado um passo adiante com a vitória de Lula. Em muitos campos, sinto até um retrocesso.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 12:59 PM
Rubens Ricupero 22 08 2004 O paradoxo da queda das exportações para os EUA

Por que o Brasil tem conseguido aumento acelerado das exportações para quase todos os mercados, exceto para o maior de todos, os EUA? Foi um documento do ministro Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), divulgado em fins de junho, que me chamou a atenção para o fenômeno. Soube depois que, mais ou menos na mesma época, o ministro levantou o assunto com os americanos em Washington. Tentando entender o que está por trás da tendência, venho trocando idéias com colegas na capital americana e com Vivianne Ventura Dias, ex-diretora da Divisão de Comércio Internacional da Cepal, que me enviou interessante estudo de Fernando Pimentel Puga, na "Sinopse Econômica do BNDES", nº 137, julho de 2004. Vamos primeiro aos fatos, tais como resumidos nesse estudo. Em 2003, as exportações brasileiras cresceram 21%, com aumentos de 33% para a Ásia, 80% para a China, 29% para a Europa oriental e 50% para a África do Sul e outros mercados novos. Em contraste, para os Estados Unidos, as vendas só aumentaram 8,8%. Nos cinco primeiros meses deste ano, agravou-se a disparidade, já que as exportações em geral se aceleraram a 25%, enquanto para o mercado americano elas se arrastaram com um raquítico "crescimento" de 1,2%. Tanto Vivianne quanto os documentos consultados assinalam que a pauta exportadora para os EUA é altamente concentrada em oito setores, com poucas empresas, representando 61,3% do total: aviões da Embraer, combustíveis minerais, maquinária e peças, máquinas elétricas e peças, veículos e peças, calçados, ferro e aço, madeira e artigos de madeira. O levantamento feito pelo Ministério de Desenvolvimento indica quedas expressivas nas exportações da maioria desses produtos, nos primeiros meses do corrente ano: automóveis e caminhões (-61%), telefones celulares (-56%), petróleo bruto (-50%), celulose (-30%), lubrificantes (-22%), aeronaves (-8,8%). Toda vez que o intercâmbio bilateral registra variações dessa magnitude para baixo, o primeiro suspeito do crime é sempre a demanda: recessão no mercado importador ou medidas governamentais restritivas das importações. Não é esse, obviamente, o caso atual. Em 2003 e 2004, a economia americana vem crescendo bem, embora sinais recentes comecem a sugerir um início de desaceleração. Apesar do relativo enfraquecimento do dólar, o último déficit comercial dos EUA acusou um espantoso agravamento em um mês, de quase US$ 10 bilhões (de US$ 46 bilhões a mais de US$ 55,5 bilhões), do qual apenas um quarto atribuível ao aumento do petróleo. Em alguns poucos itens, é possível detectar o impacto de medidas restritivas, sobretudo em camarões, em que o simples anúncio da abertura de investigação antidumping fez as vendas mergulharem 47%. Um exemplo que se poderia chamar de crônico é o do suco de laranja. Aqui, a alta tarifa específica preexistente combinou-se com a redução de consumo por motivos dietéticos e o aumento de produção na Flórida (antes do furacão) para provocar contração de 55%. Eliminada a demanda, resta, como suspeita principal, a oferta, cuja culpabilidade já é fortemente sugerida pela elevada concentração da pauta exportadora. Conforme venho repetindo, oportuna e inoportunamente, a oferta brasileira é limitada em gênero, quantidade, qualidade e preço. Em gênero porque só dispomos de oferta abundante e em expansão no setor agropecuário, justamente aquele de menor peso no comércio com os EUA (8%), como realçado no exame de Fernando Puga. Nessa área, os americanos ou são nossos competidores (soja, frango) ou protegem a produção doméstica não-competitiva com tarifas e quotas (suco de laranja, açúcar, etanol, tabaco), subsídios (algodão) e barreiras fitossanitárias (carnes, frutas). Não é de admirar, assim, que a agricultura puxe as exportações brasileiras na Europa, na China, no mundo inteiro, menos nos EUA. Que a quantidade não é lá essas coisas, vê-se no exemplo dos celulares. A explicação principal para a queda das vendas de portáteis é o reaquecimento da demanda no Brasil e na Argentina. Trocando em miúdos, não temos produção suficiente para atender os três mercados ao mesmo tempo. Um fator subsidiário foi o câmbio, isto é, a valorização do real em relação ao dólar. De fato, a média cambial do primeiro quadrimestre de 2003 foi de R$ 3,398, passando a R$ 2,897 em 2004, o que abriu caminho para que a China ocupasse o lugar esvaziado pelo produto brasileiro, uma vez que os chineses, contrariamente a nós, continuam a não permitir a apreciação de sua moeda relativamente ao dólar. Suspeito que o mesmo fator e outros de custo estejam presentes na estagnação das vendas de calçados, que se mantêm há anos em torno de US$ 1 bilhão anuais, perdendo terreno de 8,1% (1995) para 6,2% (2003), num mercado dinâmico, para o qual as exportações chinesas saltaram de 45% para 63% no mesmo período. Quando se olha para os nossos dois principais mercados, nos cinco primeiros meses de 2003 e 2004, o que se enxerga é que o crescimento para a União Européia foi de 28,5%, contra apenas 1,2% para os EUA, o mercado americano encolhendo para o Brasil de 25,41% a 20,54%. A Europa é, para nós, um fraco consolo porque só nos compra, no essencial, produtos primários ou de baixo índice de elaboração, vulneráveis a barreiras sanitárias (soja na China, carne, por causa da aftosa) ou a violentas oscilações de preços, como ocorre, no momento, com a soja, cujas cotações desabam, ao mesmo tempo em que a praga da ferrugem asiática pressiona os custos. Em compensação, mais de 60% das exportações brasileiras aos EUA são de manufaturas de tecnologia alta ou média, maior valor agregado e preços estáveis. Devido à elevada propensão para importar e o grau de abertura (a tarifa média aplicada é de menos de 2%), o mercado americano funciona como uma espécie de barômetro para aferir a competitividade dos exportadores, exceto, é claro, nos produtos protegidos. As preferências tipo Nafta não tiveram incidência no caso, pois tanto nós como os mexicanos estamos perdendo a corrida contra a China e os asiáticos, que não gozam de nenhum tratamento favorável. É por isso que, passadas as eleições nos EUA, seria importante examinar de perto o intercâmbio bilateral para ver o que depende da demanda e pode ser melhorado por negociações que aproveitem o bom clima criado em Genebra pelo papel construtivo do Brasil, reconhecido de público por Washington. Quanto ao resto -e imagino que será, de longe, o principal-, isto é, as insuficiências de oferta, devem ser enfrentadas com políticas de competitividade, incluída taxa de câmbio estimuladora das exportações. O justificado orgulho com o êxito no setor agropecuário não nos deve iludir: quem não consegue exportar aos EUA produtos não-protegidos não é competitivo nos setores mais dinâmicos e de maior valor agregado do comércio, os únicos que, no longo prazo, permitem alcançar as economias avançadas e superar o subdesenvolvimento
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 12:58 PM


sábado, agosto 21, 2004

Agosto 21, 2004

Agosto 21, 2004
André Petry 21 08 2004 Quem matou Edison?


A criminalidade e a lentidão da Justiça brasileira são duas chagas nacionais que, volta e meia, entram no debate. Agora mesmo, em relação aos dois assuntos, o governo propôs uma discussão sobre a lei dos crimes hediondos e produziu um detalhe diagnóstico do Poder Judiciário, prontamente rechaçado pelos magistrados que se indignaram com a informação de que estariam entre os juízes mais bem pagos do mundo. Lamentavelmente, prestou-se pouca atenção em uma notícia que tanto ajuda a impulsionar a criminalidade e desmoralizar a Justiça brasileira – o arquivamento do caso do jovem Edison Tsung Chi Hsueh. Para quem não se lembra, Edison Hsueh é o calouro de medicina da Universidade de São Paulo que, depois de um trote aplicado pelos veteranos, apareceu morto no fundo da piscina do clube atlético da universidade. A tragédia ocorreu em 23 de fevereiro de 1999 e nunca foi plenamente esclarecida: ele afogou-se acidentalmente ao cair na piscina sem saber nadar? Sob intenso stress, ele resolveu jogar-se na piscina numa tentativa bem-sucedida de suicídio? Ou seus colegas jogaram-no na piscina várias vezes e acabaram levando Edison Hsueh à morte?
Na semana passada, noticiou-se que a Justiça arquivou o processo em que dois estudantes, ambos já formados em medicina, eram acusados de ter matado o calouro naquele 23 de fevereiro de 1999. Por tabela, a decisão judicial também inocenta outros dois estudantes que, na época, participaram da festa e do trote. Com o arquivamento do processo, criou-se o seguinte cenário: um jovem apareceu morto numa festa dentro da universidade mais respeitada do país – e ninguém sabe mais nada e ninguém é punido e não há mais processo. Isso é justiça? Antes, cabe um esclarecimento: não se está aqui insinuando que os ex-estudantes de medicina da USP sejam culpados da morte e que, portanto, tinham de ser punidos. Não. Nada disso. Eles podem ser inteiramente inocentes. O problema é que a Justiça, ao arquivar o caso, não prolatou uma sentença dizendo que eram inocentes. O caso foi arquivado porque, no entender dos juízes, a promotoria não conseguiu provar que houve um crime – e, não havendo crime, não há criminosos. Tudo perfeitamente legal, mas cabe uma indagação central: fez-se justiça?
Não existe nada melhor para estimular a criminalidade, para aumentar o desprezo à polícia e a descrença na Justiça do que casos como o de Edison Hsueh. O governo está certo ao fazer um diagnóstico do Poder Judiciário. Está certo ao debater a lei dos crimes hediondos, que, aliás, só serve para fazer demagogia. Mas enquanto uma morte como a de Edison Hsueh – uma morte que chamou a atenção do país, que foi fartamente noticiada pela imprensa, que ocorreu entre estudantes de classe média e futuros médicos, que levou a reitoria da USP a proibir os trotes para sempre –, enquanto uma morte desta não ganha uma resposta, uma explicação, um esclarecimento, não se pode esperar muita coisa. Arquivar um caso está dentro das regras. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. O problema é que no Brasil isso acontece demais. O Estado brasileiro está informando aos familiares de Edison Hsueh que não sabe o que se passou naquele 23 de fevereiro de 1999 e, portanto, convida todos nós a esquecer o assunto. Que tal? Vamos esquecer? D
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:58 PM
Tales Alvarenga 21 08 2004 Baleia no Planalto

O presidente Lula é como aquela baleia que encalhou uma semana atrás numa praia do Rio, atraindo uma multidão de populares que queriam ajudar a salvá-la. Tanto no caso da baleia como no de Lula, os brasileiros torcem por eles. Nem o presidente nem o cetáceo parecem ter entendido isso. Não se esforçam para desencalhar.
Por um impulso irracional, o brasileiro ama as baleias. Não se sabe por que devora sem compaixão o bacalhau, que é cada vez mais raro nos mares do norte. Também aprova Lula, conforme as pesquisas. O que se espera é que as baleias e o presidente façam um esforço para justificar o prestígio que têm. Lula está fazendo exatamente o oposto. Seu governo inventa desnecessariamente uma nova crise a cada semana.
Em viagens ao exterior nos últimos dias, Lula defendeu um projeto de censura à imprensa e chamou os jornalistas de "covardes" por ficarem contra esse projeto. Em outra oportunidade, disse que foi ao Gabão aprender com o ditador de lá como é que um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição. Lula é tão espontâneo como uma baleia. Com freqüência cisma de nadar em direção à praia sem perceber que vai encalhar. Diz absurdos e toma decisões de um amadorismo tosco. As pessoas são complacentes com ele, e a vida segue adiante.
Entre os jornalistas, há mesmo muitos covardes, mas não por se negarem a ficar na defesa de um projeto autoritário do governo para amordaçar a imprensa. Quanto ao desejo de permanecer 37 anos no poder, como quer Lula, essa é uma característica bastante comum nos políticos. Sergio Motta, homem forte do governo de Fernando Henrique, tinha um projeto de vinte anos para os tucanos no Planalto. Agora, descobre-se que o projeto de poder dos petistas é coisa para meio século.
Lula fez as declarações citadas acima em tom de gracejo. Quis mostrar que não leva tais assuntos muito a sério. Talvez essa capacidade de fazer coisas espontaneamente, com jeito brincalhão, explique um pouco da popularidade de Lula. Os brasileiros não são muito exigentes em relação a crianças, índios e pessoas brincalhonas como baleias.
Durante séculos, as baleias foram caçadas e algumas espécies se tornaram candidatas à extinção. Hoje, esse risco não existe mais. Manadas de cetáceos trafegam impunemente pela costa brasileira, para cima e para baixo, sem sofrer ataque de espécie alguma, a não ser a proximidade de barcos cheios de turistas que tiram fotos, abanam as mãos e gritam coisas animadoras para elas.
Lula é tratado com simpatia semelhante. Foi perseguido por uma ditadura e, quando entrou na vida política, sofreu preconceito da elite porque se mostrava disposto a virar o Brasil de pernas para o ar. Apelidado de "sapo barbudo" em sua primeira campanha presidencial, em l989, foi deglutido pela elite e pela classe média. Está perfeitamente integrado ao topo da pirâmide econômica e social. Os preconceitos que havia contra o sindicalista agressivo se transformaram em preconceitos a favor do presidente.
Lula goza hoje da imunidade de uma baleia. Transformou-se quase numa entidade protegida pelo Ibama. Está tão confiante que ousa tudo. Inclusive nadar para a praia.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:55 PM
Diogo Mainardi 21 08 2004 Diogo Mainardi
A irmandade chavista

Sessenta e oito intelectuais e artistas brasileiros assinaram o manifesto "Se fosse venezuelano, eu votaria em Chávez". Os nomes de sempre: Oscar Niemeyer, Celso Furtado, Antonio Candido, Leonardo Boff, Chico Buarque, Augusto Boal, João Pedro Stédile, Beth Carvalho. Não sei se os venezuelanos consideram Beth Carvalho uma intelectual ou uma artista. Também não sei quantos votos seu apoio rendeu a Hugo Chávez.
Os intelectuais e artistas brasileiros não perdem ocasião para assinar manifestos. O decano da categoria é Oscar Niemeyer. Assinou praticamente todos os manifestos que surgiram nos últimos anos. Do que condena a guerra no Iraque ao que repudia a autonomia do Banco Central. Do que defende o MST ao que pede a reabertura das investigações sobre o assassinato de Toninho do PT, prefeito de Campinas. Pena que os intelectuais e artistas brasileiros não tenham pensado em assinar um manifesto pedindo uma CPI sobre o assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André. Esperemos que seus pares venezuelanos tomem essa iniciativa.
Oscar Niemeyer, Chico Buarque e João Pedro Stédile assinaram um manifesto de solidariedade a José Dirceu, abalado pelo caso de corrupção em seu ministério. Os mesmos Oscar Niemeyer, Chico Buarque e João Pedro Stédile assinaram um manifesto de solidariedade a Cuba, depois que o regime de Fidel Castro mandou matar uns miseráveis que roubaram um barco para tentar fugir do país.
Os intelectuais brasileiros formam uma espécie de irmandade. Entre os signatários do manifesto de apoio a Chávez, encontram-se tanto Carlos Heitor Cony, agraciado com uma aposentadoria milionária pela Comissão de Anistia, quanto Marcelo Lavenère, presidente da mesma comissão. Outros dois intelectuais que manifestaram apoio a Chávez foram Fernando Morais e Guilherme Fontes, respectivamente autor e diretor de Chatô. Guilherme Fontes, por causa do filme, passou os últimos tempos defendendo-se de acusações de irregularidades no uso de verbas públicas. Fernando Morais passou os últimos tempos defendendo seu padrinho político, Orestes Quércia, de acusações semelhantes.
Um dos mais entusiasmados signatários do manifesto chavista foi o bispo Tomás Balduino. Ele pregou "a mística bolivariana", por sua "coragem de enfrentar o império americano", da mesma maneira que pregou, no passado, a invasão de terras produtivas e o saque a supermercados. Tomás Balduino foi um dos promotores do fracassado plebiscito da dívida externa. Ultimamente, passou a recolher adesões para um plebiscito contra a Alca. Muitas das personalidades que assinaram o manifesto chavista assinaram também, um ano atrás, uma carta aberta a Lula, alertando-o contra a Alca e seu projeto neoliberal, que condena o Brasil a pagar juros apenas "para saciar credores insaciáveis". Preocupados com os rumos da cultura, os intelectuais e artistas aproveitaram para lembrar o presidente de que a nação não pode "entregar ao mercado a formação de sua juventude". Lula continuou a pagar juros aos credores. Em compensação, intelectuais e artistas ganharam cargos públicos e projetos de lei para o controle de imprensa e cinema.
Se eu fosse venezuelano, votaria contra os brasileiros
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:54 PM
Sérgio Abranches 21 08 2004 Qual é a prioridade?

Outro dia, durante uma reunião na sede de uma empresa perto da favela da Mangueira, no Rio de Janeiro, às 11h30 da manhã, a discussão sobre cenários de longo prazo para o Brasil era entrecortada por rajadas de metralhadora. O que pensar sobre o Brasil de 2020 nesse contexto? A propensão era apostar no pior cenário, de fracasso coletivo.
Mas esse é apenas um instantâneo da dissolução da autoridade pública, da desordem e do desregramento. Quem mora nos bairros limítrofes à Rocinha, no Rio de Janeiro, se acostumou a ouvir, a qualquer hora do dia, tiroteio com armas automáticas de uso militar. Virou rotina. É como manter a TV ligada em um canal de Bagdá. A trilha sonora é de guerra. Virou tema de conversa, freqüentemente descontraída, dos moradores dos bairros de classe média da Gávea e de São Conrado.
Ilustração Ale Setti
Passamos a encarar com a frieza com que olhamos as estatísticas cenas e sons de uma tragédia coletiva, presente em nosso cotidiano, como uma novela sem fim. As fotos dos jovens dizimados pela guerra de quadrilhas, pela violência tanto do aparato policial como dos bandoleiros, geram tão pouca indignação quanto a informação de que a taxa de mortes por 100.000 pessoas, entre jovens de 15 a 24 anos, causadas por homicídio é praticamente o dobro da taxa para o total da população. No Rio de Janeiro, é oito vezes maior. Já quase nem ligamos para o fato de que 68% dos óbitos dos jovens de sexo masculino, nessa faixa etária, se devem a homicídios, acidentes de trânsito e suicídios. Estamos perdendo nossa juventude, por omissão, acomodação e pela irresponsabilidade generalizada dos que comandam o setor público no Brasil, seus Estados e seus municípios.
Numa viagem entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, em um trecho de mais de 100 quilômetros, não consegui trafegar a mais de 10 quilômetros por hora. Era forçado a deixar a pista para me livrar de carretas e ônibus que trafegavam na contramão para desviar de buracos que cobriam toda a extensão da estrada. Uma viagem de carro pelo Brasil flagra, em cada trecho de estrada, sinais inequívocos da crise do Estado e de autoridade que vivemos. Parente daquela desordem urbana. A absoluta ausência do setor público bombardeou as estradas federais, estaduais e municipais. Trafegáveis, em condição plena, só as privadas. Aumentei a média de velocidade preferindo estradas vicinais, sem asfaltamento.
A proliferação de quebra-molas mostra a ausência da autoridade pública, a omissão, o mau comportamento da patrulha rodoviária, a transgressão generalizada.
Como fenômeno coletivo, a desobediência sistemática revela o não reconhecimento da legitimidade das regras. Mas por que um cidadão deveria considerar respeitável uma autoridade que afixa uma placa de limite de velocidade de, digamos, 80 quilômetros em uma estrada cujo estado não permite velocidade superior a 20? Logo à frente, se puder, ele desobedecerá a todos os limites.
As estradas deseducam, sabotam a competitividade e a capacidade exportadora do país e matam. As mortes representam, na imagem eloqüente do professor Paulo Fernando Fleury, o equivalente, em nosso país, à queda de dois Boeing lotados a cada três dias.
Passamos as últimas três semanas vendo o governo querer convencer a sociedade de que é preciso vigiar e punir imprensa, mídia, programação de TV, cinema. O presidente da República, atropelando a compostura, chamou de covardes os jornalistas que se opõem. Muitos se arriscam todo dia para mostrar ao Brasil sua própria cara.
É essa a prioridade nacional? É vedando o debate e impedindo os brasileiros de ver produções estrangeiras que combateremos essa crise óbvia de legitimidade? O que é pior? Os tiroteios da Rocinha, no Rio, ou Tiros em Columbine, na TV?
Na entrega do Prêmio Ayrton Senna, oferecido a jornalistas que revelam e discutem sobretudo as carências de crianças e adolescentes e as soluções para elas, houve um consenso. Sem a liberdade irrestrita da imprensa são impossíveis a cidadania plena e uma sociedade consciente de seus problemas e suas responsabilidades coletivas.
Sou da geração que aderiu ao tropicalismo porque era criativo e libertário, num momento de chumbo de nossa história. É com imenso pesar que vejo Gilberto Gil, ex-tropicalista, aderir ao projeto de vigilância e punição, quando deveria estar usando sua criatividade e energia para mobilizar a inteligência nacional na discussão desses desvios profundos, que deformam a cultura cívica nacional. Raras vezes vi tamanha incompreensão de quais são as urgências e a prioridade da nação.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:52 PM
LUÍS NASSIF 21 08 004 A indústria farmacêutica nacional

Não é fácil a definição de um modelo competitivo para a indústria farmacêutica nacional. Mundialmente, há uma tendência à concentração no setor. No futuro, deverão existir duas grandes empresas na Europa, duas nos Estados Unidos e duas no Japão. O Brasil possui 250 empresas, poucas médias, nenhuma grande. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) desenvolveu bons estudos nos últimos meses, conversou com companhias, está promovendo conversas iniciais, apostando na criação de um grupo com US$ 700 milhões a US$ 800 milhões de faturamento/ano. De certo modo, o Brasil enfrenta, hoje, o desafio da Espanha de 15 anos atrás. O início da lei das patentes induziu as empresas espanholas à concentração em torno de oito ou nove grandes laboratórios, que definiram acordos com multinacionais. Ocorre que, no Brasil, o setor ainda é muito rançoso e familiar. Existem empresas como Aché, Biossintética, Eurofarma, Meddely, SEM e Cristália. Mas ainda há muito a caminhar até chegar a um acordo para a grande fusão. O segundo ponto são o investimentos necessários em pesquisa e lançamento. Depois de definido o princípio ativo e feitos os testes de toxicologia, há uma fase onerosa, com os testes pré-clínicos (em animais) e clínicos (em pessoas). O Brasil pode se tornar um grande centro de testes clínicos. A entrada dos genéricos permitiu uma notável evolução na qualidade dos laboratórios com o aprofundamento da pesquisa clínica. A Comep (Comissão Nacional de Estudos e Pesquisas), ligada ao Conselho Nacional de Saúde, está incumbida de regular os estudos clínicos. Mas os estudos internos não são suficientes para aprovação na Europa. Para obter a certificação européia, exige-se investimento de 1 milhão por princípio ativo. No FDA norte-americano, o investimento poder chegar a US$ 2 milhões. Nessas regiões, as agências reguladoras, no fundo, se transformaram em grandes agências de política industrial. No Brasil, BNDES, Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior têm se esforçado por definir uma política para a área. Mas uma perna essencial -o Ministério da Saúde- está manca. Em geral, levam-se de oito a dez meses para obter um protocolo. Os estudos são caríssimos e muito regulados. Depois de Gonçalo Veccina, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) virou um buraco negro. No setor, não existe mais uma ação coordenada do Ministério da Saúde. Às vezes, chega a adotar posições mais rigorosas que a própria FDA norte-americana. Com a perda de rumo, o Brasil perdeu posição até para o México, como atração de investimentos na área. O setor exige regulação dura, porque se mexe com saúde humana. O problema da Anvisa é que, nos últimos 18 meses, foi desmontada, deixou de ter critérios claros de fiscalização, aumentando demasiadamente o poder discricionário dos fiscais.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:48 PM
FERNANDO RODRIGUES 21 -8 204 Transparência zero


BRASÍLIA - Ao sancionar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), Lula vetou o acesso de deputados e senadores ao Siafi. Logo depois, editou um decreto dando de volta esse privilégio mixuruca. É pouco ou quase nada na direção da transparência. O Siafi é o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal. Ali é possível saber quantas garrafas de água tônica ou quantos roupões de algodão egípcio são comprados pelo Planalto. Só congressistas têm acesso total ao Siafi. Se um dos 179,4 milhões de brasileiros deseja consultar o sistema, precisa mendigar a um deputado ou senador. É degradante. O episódio exemplifica à perfeição a distância entre o que a administração Lula promete em público e o que tem feito na prática. Em janeiro de 2003, o ministro Waldir Pires, da Controladoria Geral, declarou o seguinte: "Quero abrir o Siafi para que todos os cidadãos tenham acesso. Quero também a ampla publicidade dos balanços e relatórios periódicos da administração pública. Sempre de forma inteligível a todos". Waldir Pires está certo. Deveria protestar contra outros vetos que Lula impôs ao sancionar a LDO. Por exemplo, foi vetada a obrigatoriedade para o governo explicitar "os parâmetros esperados" para o "nível de endividamento e volume de desembolso com serviço da dívida". Lula também ficou invocado com a expressão "acesso irrestrito" a dados sobre Orçamento, Previdência e arrecadação. Vetou-a. Eis a justificativa: "[A] divulgação pode perturbar desnecessariamente o ambiente político e econômico do país, sem nenhuma vantagem aparente". Fantástico. O governo Lula tem alguns defeitos, menos o da incoerência. Primeiro, propôs uma lei que visa "orientar, disciplinar e fiscalizar" a atividade de jornalismo. Agora, decide quais informações sobre seus gastos podem "perturbar desnecessariamente o ambiente" -como se já não fosse perturbada ao máximo a mente capaz de produzir raciocínio com tanto desapreço pela transparência.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:45 PM
CLÓVIS ROSSI21 08 2004 Petulâncias tolas


SÃO PAULO - O PT parece empenhado em espezinhar as instituições republicanas. O caso recente mais espetacular é a afirmação do presidente nacional do partido, José Genoino, para quem o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, "vai colocar o carro nos eixos". "Carro", no caso, é exatamente a mais alta corte judicial brasileira. Quando Jobim foi nomeado ministro do STF, na gestão Fernando Henrique Cardoso, petistas de grosso calibre viviam dizendo que ele seria "o líder do governo no Supremo". Agora, vai "colocar o carro nos eixos". O distinto público fica, portanto, autorizado a supor que o Supremo, na visão do PT, é apenas um apêndice do governo de plantão. Tanto havia ruído ruim na frase que Genoino cuidou ontem de "esclarecer" o que havia dito, mas sem retirar o do "carro nos eixos". Afinal, se o PT acusava um ministro da Casa de ser "líder do governo" e, agora, diz que ele vai colocar o STF nos "eixos", que só podem ser os eixos pelos quais se pauta o governo, a única conclusão possível é a de que, ao menos para o partido ora no governo, não há separação de Poderes, mas a mais absoluta promiscuidade. Não faltará quem diga que esse tipo de mentalidade reflete o autoritarismo intrínseco dos petistas. Pode ser, mas eu prefiro outra hipótese: trata-se de uma soma de despreparo com petulância típica de novos-ricos. Novos-ricos porque: 1) Nunca ocuparam o poder federal e, agora, se lambuzam com ele; 2) A economia vive o melhor momento desde a posse de Lula, o que faz com que a turma de novos-ricos acenda charutos com notas de US$ 100, na forma de uma retórica boboca. Em um momento de calmaria como o atual, esse tipo de frase pode ser visto apenas como folclórico. Mas é sempre conveniente tratar com respeito, até retórico, as instituições.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:43 PM
OPORTUNISMO PETISTA FOLHA DE S.PAULO EDITORIAL 21.08.2004



OPORTUNISMO PETISTA
As declarações do presidente nacional do PT, José Genoino, ao comemorar a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou constitucional a cobrança de contribuição de servidores inativos, serviram para fortalecer a impressão de que o petismo se sente cada vez mais desembaraçado para dar livre curso à sua vocação centralizadora e autoritária. Aos olhos de Genoino, o presidente do STF, Nelson Jobim, é um "homem de Estado" que irá colocar "o carro nos eixos". As palavras do líder do PT são mais um preocupante sintoma da rarefeita consciência republicana instalada no poder. O que significa, afinal, colocar o Supremo "nos eixos"? Tutelá-lo? Estaria o líder do PT convidando o STF a transitar apenas pelos trilhos preferidos pelo Executivo? A desenvoltura com que representantes do governo e do PT atiram no lixo seus pontos de vista do passado já vai muito além do que os mais benévolos poderiam considerar como saudável "autocrítica". Quando o mesmo Nelson Jobim foi indicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para ocupar a função de ministro do STF, lideranças petistas não perderam ocasião para acusá-lo de "líder governista" na mais alta corte do país. Agora, quando o governismo é o PT, Jobim é tratado como correia de transmissão do Executivo no Poder Judiciário. Essas manifestações de oportunismo político deixam às claras a incrível "flexibilidade" do petismo quando se trata de defender seu projeto de poder. Os ventos mais favoráveis da economia parecem enfunar ainda mais a petulância do governo e do partido, cujos luminares se sentem à vontade para distribuir gracejos e provocações e emitir seus rudimentares conceitos a respeito do funcionamento da democracia. Quanto a isso, em pouco tempo já se viu bastante: não se divisa no atual governo nenhum sinal de verdadeiro apreço pela tarefa de construir e fortalecer o arcabouço republicano do país. Tudo se passa como se as instituições fossem simplesmente instrumentos a serem "colocados nos eixos" pelo partido com vistas à sua perpetuação no poder.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:42 PM
João Ubaldo Ribeiro 15 08 2004 Agora só falta um ato institucional



Em episódio que não sei mais se se estuda na História do Brasil, pois nem mesmo sei se ainda se estuda História do Brasil, nos contavam, às vezes com admiração, que D. Pedro, o da Independência, irritado com a primeira Assembléia Constituinte brasileira, por ele considerada folgada e ousada, encerrou a brincadeira e outorgou a Constituição do novo Estado. Decerto a razão não é esta, é antes um sintoma, mas vejo aí um momento exemplar da tradição de encarar o Estado (que, na conversa, chamamos de “governo”) como nosso mestre e os nossos direitos como por ele dadivados. Os governantes não são mandatários ou representantes nossos, mas patrões ou chefes.
Claro, há muito o que discutir sobre o conceito de praticamente cada palavra que vou usar — isto sempre, de alguma forma, é possível —, mas vamos fingir que existe consenso sobre elas, não há de fazer muito mal agora. Nunca, de fato, tivemos democracia. E a República não trouxe nenhuma mudança efetivamente básica para o povo brasileiro, nenhuma revolução ou movimento o fez. Tudo continua como era dantes, só que os defeitos, digamos, de fábrica, vão piorando com o tempo e ficam cada vez mais difíceis de consertar. Alguns, na minha lúgubre opinião, jamais terão reparo, até porque a Humanidade, pelo menos como a conhecemos, deve acabar antes.
Os tempos recentes têm sido um pouco menos ruins, levando-se em conta um bom indicador de democracia, que é a liberdade de informação e de expressão, bem como de opinião e criação artística. Nisto, vimos sendo felizes, pois de fato, dando-se o abatimento das limitações que qualquer um poderá arrolar indefinidamente, fala-se o que se quer e se manifesta o que se quer, dentro dos limites da lei. Se isso não é conseguido por alguém ou por grupos e setores, não se deve à ação direta do governo. No que diz respeito a ele, cada pessoa ou grupo pode pensar como quiser e dizer o que quiser. Não é assim?
Não, não é. Era, quando o governo atual estava na oposição, como, aliás, tudo mais em política. Naquela época, não havia denuncismo, não só na imprensa quanto entre os oposicionistas, como o presidente mesmo (não canso de lembrar: que excelente candidato foi o nosso presidente!), que chamava uns e outros de ladrão a torto e a direito e, sobre os deputados, cujo trabalho atualmente elogia, disse que não passavam de 300 picaretas, sem que ninguém, o que podia ter sido feito, procurasse a Justiça, para que ele provasse que pelo menos crime de injúria ou difamação não havia cometido. Mas, como alieno culo piper refrigerium est continua princípio basilar da vida, agora campeia a denúncia irresponsável e leviana, a que urge dar cobro.
Sim, repita-se a cantilena. A imprensa comete erros e excessos, como toda atividade humana. Para coibi-los, existem leis. Mas não foi o governo que deu ao cidadão o direito de estrilar publicamente contra o que ele faz ou não faz. O direito a pensar e opinar é básico para a plenitude humana. O direito a expressar esse pensamento também não é uma benesse do governo, faz parte da dignidade e da liberdade de cada um de nós. Agora, a pretexto de regulamentar uma atividade profissional bastante diferente, por exemplo, da de um médico ou advogado, o governo revive uma idéia de odor mussolínico e encaminha ao Congresso (ainda bem que não foi uma medida provisória, instrumento legislativo ditatorial hoje costumeiro e que o presidente, quando ainda não havia denuncismo, prometeu não usar e acabar e não só não a acabou como a usa mais do que faz embaixadinhas) um projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo, para “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício do jornalismo. Tudo na melhor das intenções, é claro. É só com a trivial finalidade de regulamentar uma profissão como qualquer outra.
Não é. É o começo do arrolhamento da imprensa. E é um caminho para o peleguismo. Já existem, no projeto, os embriões completos de um sistema de censura e tutela, que poderá calar a boca de qualquer jornalista, mesmo que não faça denúncias, mas apenas críticas consideradas, digamos, destrutivas ou de mau gosto, como é o meu caso e o de incontáveis outros — nunca se sabe a que limites chegará o burocrata. Podemos esperar até ouvir de novo que o povo brasileiro ainda não está preparado para a democracia. Ou seja, eles nos deram o direito de falar, alguns de nós talvez tenhamos abusado e eles vão tirar esse direito, pronto.
Vão tirar uma conversa, não vão tirar coisa nenhuma. O povo, assim ou assado, por esse canal ou por aquele, por um jornal mambembe ou jornalão, numa rádio fuleira ou em cadeia, na tevê do condomínio ou em rede nacional, vai continuar a poder falar mal do governo e a dar curso ao que ouve e vê escancaradamente todo santo dia, em tudo quanto é canto para que olhe. O governo não tem nenhum direito, quem tem direito é o cidadão. Não se cumpre, mas está escrito e um dia se cumprirá: “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.” Qualquer coisa que o governo faz só tem legitimidade se alicerçada na vontade popular. Dirão que tal vontade é expressa pelos representantes eleitos. Está certo, mas representantes eleitos que estão aí porque sua existência institucional contou com uma imprensa capaz de avaliar, criticar e denunciar. Vamos ter responsabilidade com denúncias, não vamos antecipar julgamentos, mas não vamos calar a boca, nem obedecer a manual de burocrata. Eu não vou calar a boca, ainda mais diante de um Estado que não só toma essa iniciativa como preparou, quase à sorrelfa, um plano cultural solertemente dirigista e assustadoramente policialesco. Mas que não há de prosperar. Porque, como mostrou a imprensa, nesse e em tantos outros casos, temos mente, boca e voz livres, e não foram um presente do Estado. O direito a elas é parte de nossa essência e nenhum conjunto de aspirantes a tiranetes o vai cassar. JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:38 PM
Merval Pereira 21 08 2004 Visão nacional do Rio



A eleição municipal no Rio de Janeiro contrapõe dois pólos políticos que ganharam proeminência nacional e estarão em confronto na eleição presidencial de 2006: o grupo do ex-governador Garotinho e o do atual prefeito Cesar Maia, candidato favorito à reeleição. A força política de Garotinho não parece capaz de eleger seu candidato na capital, o ex-prefeito Luiz Paulo Conde. Mas, no interior, o PMDB faz contas de dominar pelo menos 70 dos 92 municípios, o que daria ao grupo o controle de 80% do estado.
O prefeito Cesar Maia desdenha os números, pois diz que “infelizmente isso não é tão importante no Estado do Rio, já que todos os governadores, no dia seguinte à posse, passam a contar com dois terços dos prefeitos”. O fundamental para ele “é ter pontos de multiplicação em cada região do estado”. Em termos concretos, o PFL tem apenas 4,3% dos municípios do Rio de Janeiro.
Cada um, portanto, demonstrará sua força de maneiras distintas, e para tal tem também estratégias distintas de atuação. Garotinho tentou encontrar candidatos mais viáveis do que Conde -— chegou a combinar com Leonel Brizola uma candidatura à prefeitura, dias antes da morte do presidente do PDT.
Mas será mesmo Conde a enfrentar mais uma vez Cesar Maia, que vai para a reeleição com a popularidade em alta e o Favela-Bairro, que é citado em pesquisas como o programa com avaliação mais favorável pelo eleitorado carioca, como seu grande trunfo.
Como na campanha anterior, a disputa pela paternidade do projeto vai ser renhida, pois Conde foi quem implantou o Favela-Bairro quando ainda era secretário de Urbanismo, na primeira administração de Cesar Maia, e alega que o programa é concepção sua.
Assim como na economia no plano federal, o sistema de reeleição provocou uma continuidade curiosa nas políticas públicas do Rio de Janeiro. Na economia, estamos no décimo ano da mesma política, implantada a partir do Plano Real. No Rio, com a vitória de Cesar ou de Conde, será a quarta administração seguida sob o mesmo conceito urbanístico.
Para garantir sua permanência, o prefeito Cesar Maia tem aumentado a atuação na Zona Oeste, onde o grupo de Garotinho mostrou grande penetração na eleição para governador, quando sua mulher, Rosinha, se elegeu no primeiro turno. Os números mostram que a candidata Rosinha ganhou na cidade do Rio graças à grande votação que obteve na Zona Oeste.
O prefeito Cesar Maia garante que, reeleito, não será candidato ao governo do estado: pretende coordenar os jogos Pan-Americanos de 2007, e não pensa em abandonar o cargo no meio. A definição de Otávio Leite, do PSDB, como seu vice, seria um indício de que fala a verdade, já que não deixaria a prefeitura na mão de outro partido, mesmo aliado circunstancialmente.
É a situação inversa da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, que quando insistiu em ter uma pessoa de seu partido e confiança no cargo de vice, deu indicações de que poderia disputar o governo de São Paulo se reeleita.
Cesar Maia, porém, não se desligou da disputa estadual. Segundo ele, “a desintegração da administração estadual — todas as suas funções sem exceção -— é de tal ordem, que cumpre, logo após as eleições, identificar nomes que poderiam assumir esta missão de agrupar em torno de um programa suprapartidariamente todas as forças políticas que pensem assim”.
Cesar, que tem preservado um relacionamento bastante próximo com o PT, para ter o apoio do partido num eventual segundo turno contra o grupo Garotinho, diz que “o PT certamente será ou poderá ser parte disso. Para tal, nenhuma força pode excluir a outra da cabeça da chapa. E mais: pode-se, no limite, identificar um quadro da sociedade, definir-se para ele uma cobertura partidária que ajude a produzir a unidade, e seguir com ela. Mas para ser competitivo, é necessário que esta decisão seja tomada até julho de 2005”.
Tudo indica que esta parceria com o PT é circunstancial, e Cesar Maia se prepara mesmo para ser o vice do PFL numa futura disputa presidencial contra Lula, provavelmente com um candidato do PSDB na cabeça. Perguntado sobre essa hipótese, o prefeito Cesar Maia diz que “no Brasil nenhuma eleição futura pode ser analisada sem que se tenha passado pela eleição imediata”. Segundo ele, nossa política “é extremamente volátil”.
Para exemplificar, lembra o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que corria o risco de abandonar a vida pública ao fim de seu mandato de senador “quando foi convidado pelo então presidente Itamar Franco para ser ministro da Fazenda, aceitou e aqui ficou por oito anos e continua sendo uma rainha no xadrez da política brasileira”.
O prefeito parece ter razão quanto à volatilidade da política brasileira. No momento, o PSDB passa por um rearranjo que pode levar o governador de São Paulo, tido até agora como o favorito do partido para disputar a Presidência da República, a se candidatar a senador por São Paulo. O candidato tucano para disputar com Lula em 2006 seria o senador Tasso Jereissati.
O ex-governador Garotinho, por sua vez, está organizando pessoalmente a estratégia para a disputa municipal, onde o PMDB tem 41 prefeituras, dominando quase 50% dos municípios do estado, e pretende ampliar esse domínio para cerca de 80%. Passadas as eleições municipais, Garotinho vai se preparar para impor-se no PMDB como candidato à Presidência da República. No entanto, ele diz que só sai candidato se Lula estiver mal situado nas pesquisas. Caso contrário, pretende aguardar uma próxima oportunidade, já que tem 43 anos e, segundo diz, o tempo corre a seu favor.
A possibilidade de Garotinho, que recebeu de cerca de 15 milhões de votos nas últimas eleições presidenciais, vir a ser candidato pelo PMDB, pode servir de moeda de troca para o partido na sua relação com o governo federal, o que foi a motivação original de sua aceitação no partido. Nesse caso, Garotinho não passaria de uma espécie de Itamar Franco de Lula, cristianizado pelo PMDB.
Diante de um governo Lula enfraquecido, porém, ele poderia se transformar em candidato à sucessão, desta vez de um partido organizado nacionalmente. Mas terá também que se manter viável como candidato nacional. No momento, essa situação não se desenha no horizonte: o governo Lula surfa no sucesso da economia, e Garotinho sofre desprestígio com o aumento da violência no Rio, estado que sua mulher governa e do qual ele é secretário de Segurança.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:35 PM
Miriam Leitão 21 08 2004 Conter a produção


As manifestações esta semana contra o leilão de petróleo refletem uma dúvida que existe dentro do próprio governo sobre o que é melhor fazer nessa área. A política escolhida pelo governo foi a de não se tornar um exportador de petróleo, por acreditar que têm que ser preservados recursos que podem ser necessários para o Brasil no futuro. O resultado disso pode ser uma redução nos próprios investimentos. A decisão do Conselho Nacional de Petróleo, no ano passado, ao fixar a política de exploração de petróleo, foi a de que o Ministério das Minas e Energia define qual é o ritmo de produção usando o conceito de reservas sobre produção. Como diz o texto da resolução: o MME “fixará a relação ideal entre reservas e a produção de petróleo e gás natural, dimensionando e priorizando a oferta de blocos que permita a produção de petróleo e gás natural necessária à auto-suficiência e manutenção de adequado volume de reservas”. Essa resolução significa que o governo não quer que o país seja um exportador de petróleo, por isso terá que calibrar a produção na medida exata das nossas necessidades. Diante dessa escolha, o governo deverá reduzir o ritmo destes leilões como o que aconteceu esta semana no Brasil. Leilão que, por seu sucesso, criou oportunidades de investimentos, avaliados pelo diretor-geral da ANP, Sebastião do Rego Barros, em 2 bilhões de reais; no mínimo.
O sinal de que queremos apenas chegar à auto-suficiência e depois administrá-la para não sermos um país exportador pode ser um freio no ritmo de investimento, o que é irracional por vários motivos. Um deles é que não querer descobrir novas reservas, para não ter que explorá-las, fará com que o Brasil sequer conheça o seu potencial no setor. A redução do ritmo de exploração e produção pode fazer com que o país alcance a auto-suficiência para perdê-la em seguida. Garante-se, agora, a produção de vários anos à frente. A produção nas áreas licitadas esta semana só ocorrerá em 2011, 2012, pelo cálculo mais otimista da ANP. Além do mais, o Brasil sempre precisará exportar parte do petróleo que produz e, também, importar — a menos que faça investimentos gigantescos em refino. A auto-suficiência está logo ali na esquina, deve ocorrer nos próximos anos, mas campos produtores de hoje já estão em declínio e a demanda tem aumentado. Na década passada, o Brasil teve um salto extraordinário: de 650 mil barris/dia, no começo dos anos 90, para 1,7 milhão de barris atuais. Ou seja, o Brasil precisará de novos e crescentes investimentos em petróleo e nem tudo pode — ou deve — ser feito apenas pela empresa estatal. Os cálculos da ANP indicam risco de novo déficit entre produção e demanda daqui a 15 anos. Por isso, o ritmo de leilões deve ser mantido; e não reduzido.
A preocupação entre especialistas é que este conceito de reservas sobre produção, se mal usado, possa levar a uma redução do ritmo de descobertas de novas reservas, o que é ruim para o país e até para a Petrobras. Só 3% da área prospectável para petróleo no Brasil estão em concessão para a Petrobras e cerca de 40 empresas privadas, muitas delas nacionais. O sinal que passa esta decisão de ser apenas e nada mais que auto-suficientes pode afastar futuros interessados em produzir petróleo no Brasil.
Será que estamos mesmo destruindo as reservas estratégicas? A convicção na ANP é que o Brasil é extremamente privilegiado em termos de área sedimentar, com potencial ainda pouco explorado nesse setor. Por isso, o mais inteligente seria aumentar o ritmo de exploração e não tentar reduzi-lo ou tentar contê-lo nos limites dessa idéia de administração da relação reservas/produção. No campo da energia, tudo está em mudança, principalmente as fontes usadas. O que é hoje um bem altamente valioso pode não ser no futuro. A alavanca ao crescimento que poderíamos ter, se nos tornássemos grandes produtores, traria mais benefícios do que guardar desconhecido um potencial maior de produção de petróleo.
Em todos os países, as grandes empresas produtoras de petróleo revendem para produtores menores campos que atingem a maturidade. A partir de um determinado ponto, é antieconômico para uma empresa de grande porte a exploração dos campos. O natural é a revenda para produtores menores. Eles nunca produzem quantidades grandes, mas trazem outros benefícios como pulverização de investimentos, alavancagem de pequenas e médias empresas e geração de emprego. Recentemente, a ANP realizou no Nordeste um seminário para mostrar as chances abertas pela exploração de campos maduros, mostrando os fortes impactos regionais que pode trazer essa exploração. Mas os representantes da Petrobras presentes no seminário jogaram uma ducha de água fria nos mais entusiasmados, avisando que, ao contrário do que ocorre em todas empresas grandes, a Petrobras não pretende abrir mão dos campos maduros. Na sexta rodada, houve oferta de campos maduros, mas o temor é que esta idéia de manter tudo sob seu controle por parte da empresa que detém ainda o monopólio da produção de petróleo possa inibir a atividade no futuro.
É dessa forma que vão se tomando as decisões irracionais na área de petróleo. A politização do assunto é um erro. Fortalecer os setores mais corporativistas da Petrobras é outro equívoco. Tudo isso vem do dilema inicial nunca resolvido pelo governo Lula: se ele é mesmo liberal em matéria econômica ou se mantém a crença no velho estatismo que o partido defendeu durante 20 anos. Os grupos políticos que se manifestaram esta semana contra o leilão o fizeram porque perceberam que há uma enorme chance de, explorando as contradições insanáveis do governo, mudar o modelo de exploração definido logo após o fim do monopólio, recriando, assim, a visão conservadora tradicional no partido do governo.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 5:34 PM
Villas-Boas Correa 20 08 2004 Getúlio ensina a Lula



Getúlio ensina a Lula
20.08.2004 Aliviado, eufórico e loquaz com os sucessos setoriais do governo, o presidente Lula soltou a língua, que nunca foi muito controlada, e anda a espalhar pelo mundo, nas viagens de todos os dias, que são um dos encantos e ocupações do exercício do cargo, frases, conceitos, comentários e expressões populares de gosto duvidoso e gritante inadequação, agravada pelas circunstâncias e locais em que são lançadas ao vento.
A penúltima foi a piada infeliz, incrustada em apreciação distorcida, ao rejeitar o pedido dos repórteres de uma breve entrevista com a justificativa de que nós, da imprensa, somos “um bando de covardes que não têm coragem de defender a criação do tal Conselho Federal de Jornalismo”.
Um instante de reflexão presidencial constataria a impropriedade da brincadeira, que vira o bom senso pelo avesso. Ou a fina ironia passou batida na reação irritada da maioria da nossa categoria. Para fazer as pazes com a lógica, forçando a barra até envergá-la, vamos admitir que o presidente driblou a conversa, reconhecendo que é preciso a bravura misturada com cinismo para que o jornalista que se preza e se dá ao respeito defenda a proposta, de translúcida inspiração peleguista, para a criação da arapuca, que promete uma gorjeta aos conselheiros catados na lata de despejo para abrir o caminho que sempre termina na censura à imprensa.
Adiante, que o monstrengo agasalhado pelo governo, que ainda se deu ao desfrute de piorá-lo antes de encaminhar ao Congresso, se não está morto e sepultado, caiu na gaveta dos esquecidos para longa hibernação.
Lula não perdeu o embalo. A recaída na visita ao Gabão – antes da viagem ao Haiti para assistir à partida amistosa da Seleção Brasileira de Futebol, remendada, mas que deu e sobrou para a vitória de 6 a 0 contra o modesto combinado local – é muito mais lamentável, de derrubar o queixo no pasmo do embaraço. Sem que ninguém pedisse, explicou os motivos da viagem com extravagante argumentação: “Eu fui ao Gabão para aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição”.
Os bajuladores de plantão acodem com a desculpa esfarrapada, a única disponível, de que se trata de uma brincadeira que não deve ser levada a sério. Afinal, Lula tem assegurado o direito de candidatar-se à reeleição em 2006. Mais uma razão para acautelar-se e não pilheriar com um país sem tradição democrática e que ainda passa o desapreço pela rotatividade do poder, incompatível com 37 anos de permanência de um mesmo presidente, que quer mais.
Os 50 anos do suicídio do presidente Getúlio Vargas não estão passando em branco. Poucas datas mereceram igual revisão histórica, na distância que estimula a isenção do reexame não apenas do gesto extremo, que mudou o rumo do país, depois de serenada a paixão, com os sobreviventes com os cabelos brancos e a fartura de documentos à disposição dos que não se satisfaçam com a extensa cobertura da imprensa e os inúmeros e enriquecedores debates, as conferências, palestras e mesas-redondas.
Certamente que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria muito a lucrar se dedicasse alguns vagares nos intervalos das suas viagens internacionais, dos seus giros domésticos ou no repouso do fim de semana, entre a pelada e o churrasco, a informar-se sobre um dos mais importantes políticos da história republicana, seus hábitos e métodos de trabalho. Comparando, no repasse da lição, com os descontos de meio século de fantásticas mudanças no Brasil e no mundo.
Não foi o sorriso do Velhinho, a sua simpatia, a ajuda do DIP calando a boca da imprensa durante o Estado Novo, de 37 a 45, que sustentaram a popularidade de Vargas, inclusive no declínio da crise deflagrada com o crime de Tonelero e a morte do major da Aeronáutica, Rubem Vaz, nome de rua na Gávea.
Getúlio é autor da sua melhor biografia. Salva pelos cuidados de sua filha predileta, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, e publicada pela diligência da sua neta Celina. De 1930 a 1942, encheu 13 cadernos com as anotações diárias, redigidas na letra inconfundível, da sua rotina de trabalho, enriquecidas com comentários sobre os assuntos mais importantes, desabafos e intimidades surpreendentes. É o mais importante e completo depoimento do solitário e infatigável trabalhador. Certamente que jamais passou pela sua cabeça a hipótese de publicação da conversa a porta fechada com os seus botões. Em vida, ninguém sequer viu os cadernos escondidos no fundo da gaveta. Depois da sua morte, na montanha de papéis recolhidos pela filha, os cadernos foram encontrados anos mais tarde. A neta ilustre, com a dignidade ética da sua formação profissional, decidiu pela publicação, em 1995, pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, respeitando o texto integral, sem o corte de uma vírgula.
O ditador e o presidente eleito pela Assembléia Constituinte de 1934 mantiveram os hábitos do despacho do expediente de cada dia, em serões solitários ou apenas com um assessor, que varavam a noite e engoliam as madrugadas. Nenhum processo dormia na gaveta. No máximo eram deixados para o dia seguinte, nos raros casos mais complicados. O governo andava cutucado pelas cobranças do chefe atento.
Além do horário extenso, Vargas cumpria a rotina fundamental dos despachos com os seus ministros e diretores de autarquias e serviços importantes. Em vez dos 35 ministros e secretários do estilo cortiço, apenas oito ministros nos primeiros anos, passando da dezena com a criação de mais dois ou três ministérios, entre os quais o do Trabalho.
Viajar, discursar na cadência do improviso, complementam o pesado fardo administrativo.
Mas o governo oral é uma excentricidade que não dá certo. Com ou sem piadas e gracinhas.
Getúlio falava pouco. Seguia o ditado popular que ensina a não engolir insetos.
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 12:09 AM
Villas Boas Correa 20 08 2004 Moscas e bocas



Moscas e bocas
Aliviado, eufórico e loquaz com os sucessos setoriais do governo, o presidente Lula soltou a língua, que nunca foi muito controlada, e anda a espalhar pelo mundo, nas viagens de todos os dias, que são um dos encantos e ocupações do exercício do cargo, frases, conceitos, comentários e expressões populares de gosto duvidoso e gritante inadequação, agravada pelas circunstâncias e locais em que são lançados ao vento.
A penúltima amostra foi a piada infeliz, incrustada em apreciação distorcida, de rejeitar o pedido dos repórteres de uma breve entrevista com a justificativa de que nós, da imprensa, somos ''um bando de covardes que não têm coragem de defender a criação do tal Conselho Federal de Jornalismo''.
Um instante de reflexão presidencial constataria a impropriedade da brincadeira, que vira o bom senso pelo avesso. Ou a fina ironia passou batida na reação irritada da maioria da nossa categoria. Para fazer as pazes com a lógica, forçando a barra até envergá-la, vamos admitir que o presidente driblou a conversa, reconhecendo que é preciso a bravura misturada com cinismo para que o jornalista que se preza e se dá ao respeito defenda a proposta, de translúcida inspiração peleguista, de criação da arapuca, que promete uma gorjeta aos conselheiros catados na lata de despejo para abrir o caminho que sempre termina na censura à imprensa.
Adiante, que o monstrengo agasalhado pelo governo, que ainda se deu ao desfrute de piorá-lo antes de encaminhá-lo ao Congresso, se não está morto e sepultado, caiu na gaveta dos esquecidos para longa hibernação.
Lula não perdeu o embalo. A recaída na visita ao Gabão - antes da viagem ao Haiti para assistir à partida amistosa da Seleção Brasileira de Futebol, remendada, mas que deu e sobrou para a vitória de 6 a 0 contra o modesto combinado local - é muito mais lamentável. Sem que ninguém pedisse, explicou os motivos da viagem com extravagante argumentação: ''Eu fui ao Gabão para aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição''.
Os bajuladores de plantão acodem com a desculpa esfarrapada, a única disponível, de que se trata de uma brincadeira. Afinal, Lula tem assegurado o direito de candidatar-se à reeleição em 2006. Mais uma razão para acautelar-se e não pilheriar com um país sem tradição democrática e que ainda passa o desapreço pela rotatividade do poder, incompatível com 37 anos de permanência de um mesmo presidente e que quer mais.
Os 50 anos do suicídio do presidente Getúlio Vargas não estão passando em branco. Poucas datas mereceram igual revisão histórica, na distância que estimula a isenção do reexame não apenas do gesto extremo, que mudou o rumo do país, depois de serenada a paixão, com os sobreviventes com os cabelos brancos e a fartura de documentos à disposição dos que não se satisfaçam com a extensa cobertura da imprensa e os inúmeros e enriquecedores debates, as conferências, palestras e mesas-redondas.
Certamente que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria muito a lucrar se dedicasse alguns vagares nos intervalos das suas viagens internacionais, os seus giros domésticos ou no repouso do fim de semana, entre a pelada e o churrasco, a informar-se sobre um dos mais importantes políticos da história republicana, seus hábitos e métodos de trabalho. Comparando, no repasse da lição, com os descontos de meio século de mudanças no Brasil e no mundo.
Não foi o sorriso do Velhinho, a sua simpatia, a ajuda do DIP calando a boca da imprensa durante o Estado Novo, de 37 a 45, que sustentaram a popularidade de Vargas, inclusive no declínio da crise deflagrada com o crime de Tonelero e a morte do major da Aeronáutica Rubem Vaz, nome de rua na Gávea.
Getúlio é autor da sua melhor biografia. Salva pelos cuidados de sua filha predileta, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, e publicada pela diligência da sua neta Celina. De 1930 a 1942, encheu 13 cadernos com as anotações diárias, redigidas na letra inconfundível, da sua rotina de trabalho, enriquecidas com comentários sobre os assuntos mais importantes, desabafos e intimidades surpreendentes. É o mais importante e completo depoimento do solitário e infatigável trabalhador. Certamente que jamais passou pela sua cabeça a hipótese de publicação da conversa a porta fechada com os seus botões. Em vida, ninguém sequer viu os cadernos escondidos no fundo da gaveta. Depois da sua morte, na montanha de papéis recolhidos pela filha, os cadernos foram encontrados anos mais tarde. A neta ilustre, com a dignidade ética da sua formação profissional, decidiu pela publicação, em 1995, pelo CPDOC, da Fundação Getúlio, respeitando o texto integral.
O ditador e o presidente eleito pela Assembléia Constituinte de 1934 mantiveram os hábitos do despacho do expediente de cada dia, em serões solitários ou apenas com um assessor, que varavam a noite e engoliam as madrugadas. Nenhum processo dormia na gaveta. No máximo eram deixados para o dia seguinte, nos raros casos mais complicados. O governo andava, cutucado pelas cobranças do chefe atento.
Além do horário extenso, Vargas cumpria a rotina fundamental dos despachos com os seus ministros e diretores de autarquias e serviços importantes. Em vez dos 35 ministros e secretários do estilo cortiço, apenas oito ministros nos primeiros anos, passando da dezena com a criação de mais dois ou três ministérios, entre os quais o do Trabalho.
Viajar, discursar na cadência do improviso, complementam o pesado fardo administrativo. Mas o governo oral é uma excentricidade que não dá certo. Com ou sem piadas e gracinhas.
Getúlio falava pouco. Seguia o ditado popular que ensina a não engolir insetos.
villasbc@unisys.com.br
[20/AGO/2004]
Publicadoem: Sat, Aug 21 2004 12:08 AM

Arquivo do blog